quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Brizola reconheceu antes de morrer que Jango estava certo

 Por Luiz Augusto Erthal

Jango e Brizola em 1961









Duas semanas antes de morrer, o ex-governador Leonel Brizola ligou para Denize Goulart - sobrinha de sua mulher, Neuza, e filha do ex-presidente João Goulart - e pediu que ela fosse ao seu apartamento, em Copacabana. Denize foi acompanhada pelo sobrinho Christopher Goulart, filho do seu irmão, João Vicente, que estava em sua casa.

Ela chegou por volta das 11 horas e, embora ainda fosse de manhã, Brizola propôs abrir um vinho. A atitude pouco usual do velho líder trabalhista sugeria uma conversa longa e, talvez, para ele, um tanto difícil.

Começou com um preâmbulo intimista - as reminiscências do exílio, a vida no Uruguai e a própria família - como preparação para algo mais solene que viria em seguida.

“De repente ele olhou para mim e, para minha surpresa, me disse: ‘Eu tenho que te pedir perdão por tudo que vocês passaram. Tenho que pedir perdão a ti, ao teu irmão e aos meus próprios filhos’”, revelou Denize durante um debate organizado pelo Cineclube Macunaíma, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na noite desta terça-feira, 2, após a exibição do filme “Jango”, de Sílvio Tendler.

“Mas perdão por quê?  Não há nada que perdoar”, respondeu Denize, confessando que jamais pensou em ouvir algo assim de Brizola. Ela narrou, então, a declaração feita por ele com lágrimas nos olhos no final daquela manhã no antigo edifício da Avenida Atlântica, esquina com a Rua Xavier da Silveira:

“Eu fui muito contra o teu pai, muito contra o Jango. Rompi com ele em 64, nos afastamos, apesar de termos depois nos reconciliado. Mas eu fui responsável por muitas coisas e hoje acho que teu pai tinha razão. Não existia a mínima possibilidade de resistência naquele momento. Teu pai já sabia o que eu não sabia”.

“Ele falou isso olhando nos meus olhos. Eu chorava e ele também”, contou Denize.

Rompimento em 64

Brizola: Metralhadora em punho:
a campanha da legalidade





















A revelação feita por ela remete a uma das questões mais polêmicas da história política recente do Brasil: a decisão do presidente João Goulart de se deixar depor sem luta em 1964. 

Três anos antes, em 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros e o veto militar declarado em seguida contra a posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, Brizola, seu cunhado, havia levantado em armas o Rio Grande do Sul, estado que governava na época, para defender a Constituição e o direito de Jango a assumir a presidência da República. A Campanha da Legalidade, como ficou conhecido o último levante armado do povo brasileiro, liderado por Brizola, foi decisiva para impedir o golpe militar naquele momento.

Três anos depois, com a efetivação, em 1964, dos planos golpistas articulados contra os governos trabalhistas desde Getúlio Vargas (1951-1954) até João Goulart (1961-1964), Brizola, então deputado federal pelo PTB, tentou repetir a resistência armada, mas não teve o apoio do presidente. Ele chegou a assumir a direção do governo gaúcho e o comando das forças legalistas do então III Exército, àquela época o mais poderoso do país por sua missão de defender a fronteira Sul do Brasil.

Após tentar, sem sucesso, desarticular o movimento golpista que eclodiu no dia 31 de março em Minas Gerais, inicialmente no Rio de Janeiro, onde se encontrava, e depois em Brasília, para onde voou na manhã do dia 1o de abril, Jango foi ao encontro de Brizola em Porto Alegre. Eles se reuniram no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, onde Brizola apresentou ao presidente um plano de resistência. 

Jango governaria de São Borja, na proteção dos pampas gaúchos, nomeando a ele, Brizola, Ministro da Justiça e ao general Ladário Teles, que comandava o III Exército, Ministro da Guerra. O III Exército, segundo o general Ladário, teria condições de recrutar e armar 100 mil civis.

Foi uma reunião tensa, segundo relatos do próprio Brizola e de outros presentes, onde também falaram outros chefes militares leais à legalidade democrática. Ao final da reunião e após ponderar as condições militares desfavoráveis à resistência, Jango agradeceu a lealdade oferecida, mas declarou que não pretendia cobrar do povo brasileiro o preço de sangue necessário para defender o seu cargo.


Operação Brother Sam

A revelação - ”Teu pai já sabia o que eu não sabia” - feita por Brizola a Denize, acompanhada do pedido de desculpas e do reconhecimento de que Jango havia tomado a decisão acertada, por não haver condições de resistência, pode estar ligada a informações geopolíticas internacionais que o presidente já possuía no momento da deflagração do golpe.

Jango teria sido informado ainda na manhã do dia 31 de março pelo ex-chanceler San Tiago Dantas, cujas informações haviam sido transmitidas por suas fontes em Washington, de que a Quarta Frota da Marinha norte-americana havia zarpado em direção ao Brasil. Mantida em segredo por 12 anos, a movimentação dos marines para apoiar o golpe de 64 veio a público em 1976 em uma matéria do jornalista Marcos Sá Corrêa publicada pelo Jornal do Brasil.

A esquadra partiu da base naval de Norfolk em 31 de março, de acordo com as instruções do embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, que participara ativamente da conspiração contra Goulart. Foram deslocados dois porta-aviões da Marinha, com uma esquadrilha de aviões de caça, um navio com 50 helicópteros, um encouraçado, uma embarcação de transporte de tropas, além de navios petroleiros. Foram também colocados à disposição da frota 25 aviões C-135 e 110 toneladas de armas e munições. 

A Operação Brother Sam permitiria uma intervenção militar rápida em pontos estratégicos do Brasil. Em caso de resistência no Rio de Janeiro e no Sul do país, onde estavam as bases trabalhistas mais sólidas, o plano seria seccionar o país praticamente ao meio com o desembarque dos marines no Espírito Santo. A Estrada de Ferro Vitória-Minas seria estratégica para conduzir tropas e suprimentos para os revoltosos mineiros. Magalhães Pinto, então governador de Minas Gerais, declararia o “estado de beligerância” e os Estados Unidos reconheceriam o novo estado do “Brasil do Norte”, a exemplo do que ocorreu na Coreia e no Vietnã. 


Reconciliação


Brizola e Jango estiveram rompidos por oito anos. Amargaram, juntos, o exílio no Uruguai, mas não se viam, nem se falavam. Brizola com dona Neuza confinado no balneário de Atlântida, por determinação do regime uruguaio, a pedido do governo brasileiro para impedir sua movimentação, e Jango com Maria Tereza entre Montevidéu e as suas fazendas no interior. 

Ambos eram vigiados de perto por agentes da CIA e das ditaduras que se instalavam àquela altura no Cone Sul: primeiro Brasil, depois Chile, Uruguai, Paraguai e por fim Argentina.

Anos depois, já de volta ao Brasil e como governador do Estado do Rio, Brizola revelou detalhes da reconciliação com o cunhado. Jango foi à sua casa em Atlântida em um dia de 1972 para visitar a irmã, que estaria doente. Na verdade, dona Neuza teria simulado uma doença como artifício para atrair o irmão e buscar uma reaproximação entre ele e o marido.

Jango estava acompanhado de um grupo de militantes trabalhistas gaúchos, que articulavam um movimento no Brasil pela volta dos exilados. Para evitar constrangimentos, Brizola foi para o quarto, onde ligou a televisão, que estava transmitindo um jogo de futebol da Seleção Brasileira.

Jango foi sozinho até o quarto e, segundo Brizola, bateu a mão no seu ombro e disse: “Olha, Brizola, tem um grupo de companheiros aí que está querendo lutar pela nossa volta ao Brasil e precisamos conversar com eles”. 

Deu-se entre eles um diálogo ainda não conhecido completamente, mas o próprio Brizola ofereceu, conforme disse no mesmo depoimento sobre esse encontro, uma pista do tom da conversa que tiveram em Atlântida:

“Nós nos reconciliamos como dois irmãos italianos. Vocês já viram italianos discutirem em voz baixa?”

Algum tempo depois, Brizola, alertado por militares uruguaios que lhe eram fiéis, teve que deixar às pressas o Uruguai para escapar de um plano para assassiná-lo. Seu nome, assim como o de Jango, estava na lista da Operação Condor, urdida pela CIA com o apoio das ditaduras sul-americanas com o objetivo de eliminar as mais importantes lideranças populares do continente.

Brizola foi para os Estados Unidos, onde recebeu asilo do ex-presidente Jimmy Carter, defensor da luta pelos direitos humanos, e de lá para a Europa, até a sua volta ao Brasil com a Anistia, em 1979.

Jango, acometido de uma doença cardíaca, morreu em 1976. Sua morte até hoje está envolta em suspeitas de um plano para matá-lo por envenenamento. Foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio.


Assista o debate do Cineclube Macunaíma e as revelações de Denize Goulart:

1 comentários:

Anônimo disse...

Matéria, simplesmente, impressionante!
Parabéns pela publicação.

F.Pontes

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