quinta-feira, 22 de junho de 2023

O Diabo Caminha Entre Os Homens


Como romance gótico, faroeste, violento, sangrento e crítico, "Meridiano De Sangue"  funciona. Mesmo com sua aridez a obra de McCarthy impressiona. 


CormacMcCarthy_MeridianoDeSangue











Por Antonio Siqueira

Meridiano de Sangue” traz a realidade à superfície da ficção, entregando ao leitor um recorte importante da história norte-americana, nos colocando em uma jornada de confrontos entre índios, mexicanos e americanos, onde o que se vê são corpos sendo desmembrados, escalpados, crianças estupradas e muito sangue jorrando, o que faz total sentido ao título da obra, ao mesmo tempo que choca e encanta, não pelas barbáries descritas ao longo das 352 páginas, mas sim pelo lirismo e metáforas inseridas  em sua escrita, o que se assemelha e muito ao que Guimarães Rosa fez com “Grande Sertão: Veredas”, o livro mais famoso do brilhante escritor brasileiro.

O romance cumpre com maestria o seu papel. Embarcar na leitura da elogiada e emblemática obra de Cormac McCarthy, não foi um processo fácil e nem dos mais agradáveis. Com uma escrita experimental e uma narrativa bastante linear,  McCarthy tece uma história deveras sangrenta, que se desenvolve através de uma estrutura textual pesada e com longuíssimas sentenças.



“Pois suas ideias são terríveis e seus corações são fracos. Seus atos de piedade e de crueldade são absurdos, sem calma, como que irresistíveis. Enfim, vocês temem o sangue cada vez mais. Vocês temem o sangue e o tempo.“
 Paul Valéry




Mas nada supera na obra de McCarthy – por mais elogiado e genial que seja – um dos personagens mais interessantes, assustador, enigmático e inteligente que tive a oportunidade de conhecer. Juiz Holden, um homem alto, careca, que não possui pelos pelo corpo, pedófilo, assassino, poliglota, “onisciente”, que nunca dorme, que não envelhece, que se diz imortal, que caminha através do fogo sem se queimar e que fascina e amedronta não somente os personagens, mas também ao leitor. Quem seria este ser? O diabo em forma humana? Tal questionamento intriga e coloca o romance gótico de MarcCarthy ao lado de obras fáusticas como “Fausto” de Goethe e, como citado acima, “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa. Tal antagonista se equilibra muito bem com o protagonista Kid, o garoto de comportamentos ambíguos, de inocência perdida, desejado e perseguido por Holden. A jornada e embates entre os personagens nos faz questionar os limites e raciocínios quanto a crueldade humana e a humanidade em sua amplitude. Em meio a tantos conflitos onde vidas são diariamente ceifadas, não estaria realmente o diabo entre nós?

Limpeza étnica era política de Estado dos governos norte-americanos no século 19. A desculpa de sempre, nas disputas territoriais visando à demarcação de fronteiras: os aborígenes (Apaches, Sioux, Cherokees, Comanches, Iroqueses, Gilenos etc.) representavam um obstáculo para o progresso econômico capitalista e à integração nacional do país, que agregou também o Sul agrário, muito semelhante ao Brasil colonial. Estima-se que, em seu movimento para o Oeste, 23 milhões de índios foram dizimados: três vezes o número de judeus mortos pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).


The Kid


Além do componente econômico pesava, ainda, a variável cultural do racismo, uma vez que a miscigenação — ao contrário do que aconteceu largamente no Brasil — estava fora de questão para o invasor: brancos judaico-cristãos oriundos da Nova Inglaterra (atual costa Oeste dos Estados Unidos). Uma espécie de “pessoas de bem”, daquela época. A política anti-indigenista tornou-se abertamente agressiva com um dos mais respeitados presidentes do país, o democrata Andrew Jackson (1829-1837), que mereceu de André Maurois, biógrafo francês, o seguinte retrato: “Mal grado seus duelos, suas pragas pitorescas e seus acessos de cólera, lia a Bíblia e tinha a dignidade e as maneiras cavalheirescas do Sul”. Conhecemos bem o tipo, mas nada disso adiantou muito ao cidadão exemplar do Tennessee. A promulgação do “Indian Removal Act”, de 1830, permitiu a este homem do povo segregar mais de 16 mil índios do Sul no estado de Oklahoma, a Oeste do Rio Mississippi. Tais deslocamentos populacionais ficaram conhecidos como Trail of Tears (Rastro de Lágrimas).

E por falar em “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa: as histórias sucedem mais ou menos na mesma época, ou seja, a partir da segunda metade do século 19. “Meridiano de Sangue” se passa no inóspito oeste nos Estados Unidos da América, numa zona cruenta onde digladiam os conquistadores americanos brancos, os indígenas e os mexicanos. O cenário do “Grande Sertão: Veredas” é aquele território árido dos sertões mineiro, goiano e baiano, dominado pela sede, pela fome, pelo medo, pela solidão e pela selvageria que, se não garante a existência, pelo menos, adia a morte, num roteiro mais do que imperfeito para propiciar que um cangaceiro se apaixonasse por outro, criando um silente dilema afetivo, o qual somente se desfaz no final da trama, quando ocorre a trágica morte de Diadorim, cuja real identidade pertencia a uma mulher, por nascença, o alvo do amor enrustido sentido por Riobaldo. Nesse ponto, perpassa uma clara discrepância entre as obras: não há espaço para o amor, por mínimo que este seja, em “Meridiano de Sangue”.

“O juiz se curvou para mais perto. O que acha que é a morte, homem? De quem estamos falando quando falamos de um homem que existiu e não existe mais? Serão esses enigmas incompreensíveis ou não farão parte da jurisdição de todo homem? O que é a morte senão um agente?”


O Juiz



“Não faz diferença o que o homem pensa da guerra, disse o juiz. A guerra perdura. É a mesma coisa que perguntar o que o homem pensa da pedra. A guerra sempre vai existir. Antes do homem aparecer, a guerra estava a sua espera. A ocupação suprema à espera do praticante supremo. Assim foi e assim será. Assim e de mais nenhum outro jeito.”


Gostando ou não gostando, sendo um livro complexo, arrastado e as vezes maçante, a verdade é que “Meridiano de Sangue” já nasceu clássico. Um livro que se transforma e nos transforma.








 




 

1 comentários:

Anônimo disse...

Quero ler esse livro.
E que ótima resenha, que texto! Há tempos não entro, leio e comento um texto bom num blogue.

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