terça-feira, 5 de maio de 2020

Aldir Blanc, O Homem Que Escreveu A Vida

Por Antonio Siqueira



Aldir Blanc _@image_amoedo





















Aldir era apaixonado por Vila Isabel. Quis o Destino, este enigmático poeta, que o seu catavento encontrasse o girassol, lá; na Vila de Noel... e de Aldir. O compositor, escritor e cronista, Aldir Blanc Mendes, carioca de corpo, arte e alma, nascido no Estácio e 1946, é lembrado por gerações mais novas como o co-autor de "O Bêbado  e o Equilibrista"; um dos maiores clássicos da música popular brasileira contemporânea. Composta com o seu parceiro mais freqüente, o genial João Bosco e eternizada na voz da extraordinária Elis Regina.


Aldir Blanc e João Bosco: parceria de gênios 
Se o indivíduo chega de Marte, pensa que Aldir foi o compositor de uma música só e depois sumiu pelos bares da Tijuca, bairro onde Aldir viveu quase toda uma vida. Boa parte dos brasileiros desconhece que a genialidade de Aldir Blanc concebeu a criação de mais 600 canções compostas com mais de 50 parceiros, os principais: João Bosco, Guinga, Moacyr Luz, Cristovão Bastos, Maurício Tapajós e Carlos Lyra. Em seus versos mais notáveis com diversos parceiros, estão as músicas, “Bala com Bala”, “O Mestre-sala dos Mares”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “De Frente pro Crime”, “Kid Cavaquinho”, “Incompatibilidade de Gênios”, "A Nível De...", “O Ronco da Cuíca”, “Transversal do Tempo”, “Corsário”, "O Bêbado e a Equilibrista", "Dona de Mim", “Catavento e Girassol”, “Coração do Agreste” e “Resposta ao Tempo”. A maior parte destas referidas, foram temas da teledramaturgia — lê-se, novelas, folhetins... —  cuja falta de informação não permite acesso ao universo vasto da obra de poetas e compositores sem igual. Aldir Blanc escreveu a vida.



Como cronista, foi impecável, criativo, divertido e impunha uma realidade que você enxerga em qualquer esquina. A Zona Norte do Rio de Janeiro é um universo vasto de histórias, de poesia e música. Aldir escreveu tudo, inventariou a alma humana como poucos e deixou um dos maiores legados da cultura brasileira em suas mais profundas raízes. Talvez  a canção“O Mestre-sala dos Mares” seja sua obra mais emblemática no que concerne à cultura de um povo: “Glória aos piratas, às mulatas, às sereias / Glória à farofa, à cachaça, às baleias / Glórias a todas as lutas inglórias / Que através da nossa história / Não esquecemos jamais / Salve o Almirante Negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas do cais”. O salgueirense boêmio e genial não media palavras e versos, Aldir Blanc compunha seus versos com o mesmo cuidado de um ourives.

Aldir Blanc era aluno exemplar em biologia, ingressou na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro em 1965. Em 1971 já era psiquiatra formado e fez residência dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Hospital Gustavo Riedel, em Engenho de Dentro. Era terminantemente contrario aos procedimentos que usavam os eletro choques em pacientes do manicômio, saiu de lá após um ano para abrir seu próprio consultório, no centro do Rio. Levava seus pacientes, muitas vezes, para conversar num bar. Em 1973 suas composições em parceria com João Bosco já eram populares, Elis Regina edificou ainda mais a obra desse gênio e ganhou o mundo. “Dois pra lá dois pra cá” é um dos boleros mais fantásticos e na voz da Pimentinha, ganhou uma roupagem única, definitiva. Em “Dois prá lá, dois pra cá” ele conta a história de um homem apaixonado por uma mulher que tenta ensiná-lo a dançar, murmurando em seu ouvido: são dois (passos) prá lá, dois pra cá. Mas o homem apaixonado estava nervoso: “Meu coração traiçoeiro / Batia mais que o bongô / Tremia mais que as maracas / Descompassado de amor”. Aquela dança marcou este homem para sempre: “A tua mão no pescoço / As tuas costas macias / Por quanto tempo rondaram / As minhas noites vazias (…) Eu hoje, me embriagando / De uísque com guaraná / Ouvi tua voz murmurando / São dois pra lá / Dois pra cá”. Se for escrever sobre a vida e a obra, sobretudo sobre os versos de Aldir, isto não seria um artigo ou matéria, mas um muito longo ensaio. Aldir, carioca e vascaíno apaixonado, cantou o Rio de Janeiro dos subúrbios e da boemia como poucos.

O escritor publicou 12 livros excelentes: Rua dos Artistas e Arredores’’ (Ed. Codecri, 1978), "Porta de tinturaria’’ (1981), ‘‘Brasil passado a sujo’’ (Ed. Geração, 1993), ‘‘Vila Isabel - Inventário de infância’’ (Ed. Relume-Dumará, 1996), ‘‘Um cara bacana na 19ª’’ (Ed. Record, 1996), ‘‘Heranças do samba’’, em parceria com Hugo Sukman e Luiz Fernando Vianna (2004), ‘‘Rua dos artistas e transversais’’ (2006), ‘‘Guimbas’’ (2008), ‘‘Vasco - a Cruz do Bacalhau’’, em parceria com José Reinaldo Marques (2009), ‘‘Uma caixinha de surpresas’’ (2010),‘‘O gabinete do doutor Blanc — sobre jazz, literatura e outros improvisos’’ (2016) e ‘‘Direto do balcão’’ (2017). Uma obra literária de uma riqueza e de uma profundidade equânimes. Um dos maiores legados da cultura brasileira. Aldir Blanc, como a unânime e indivisível enormidade dos seres que fazem a arte florescer com a verdadeira face de um Brasil que ainda existe e resiste, deve ter morrido triste com os rumos abismais e obscurantistas que o país segue com Ministério e Secretaria da Cultura que estão sendo representados por caricaturas de um Brasil que ainda tem escrúpulos e cognição, mas que perde seus maiores pilares de sua história.

Ladeira a baixo, “A nível de...”, no plano superior de todas as criações humanas, Aldir Blanc foi o Homem que Escreveu a vida.


*Caricatura: Amoedo



"O Mestre Sala Dos Mares" - João Bosco e Aldir Blanc

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