terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Cadeia, o grande sertão de Graciliano


“Memórias do Cárcere”, a obra maior do prisioneiro que radiografou o ofício da literatura ao confiná-la em cubículos, dividindo espaço com a diversidade do povo marcado para morrer.

Por Nei Duclós


Graciliano Ramos


























Cigarros ordinários acesos um no outro para economizar fós­foro, um restinho de iodo para desinfetar um ferimento no dedo, papel e caneta embrulhados em pijamas e outros trapos numa valise que carrega por todo lado, por mais de cinco prisões para onde foi jogado junto com milhares de outros presos políticos, misturados a vigaristas, ladrões e malandros, acompanham o escritor na sua faina: o de escrever notas que mais tarde vão continuar a literatura iniciada nos confins do Brasil seco e violento. Os livros que esmerilha na sua rotina brutal são narrados como personagens ocultos, um amontoado de letra miúda, mal alinhavadas e passíveis de todas as correções.

O protagonista é o livro — pode ser “Angústia”, publicado em 1938, ou as anotações que geraram mais tarde “Memórias do Cárcere”. Ele está sendo esmiuçado nos apertos sem conta, em meio ao pavor, o horror, a miséria, a sujeita e o escândalo. O que lemos em “Me­mórias do Cárcere” é uma obra sobre literatura, que começa a ser esboçada na cadeia. A s notas se transmutam mais tarde, reescritas e editadas (dez anos depois de sua soltura, em 1938) para a posteridade — foi publicado em 1953 pelo seu filho Ricardo, que mudou o título original, “Cadeia”.

Escrever é a ação principal deste grande sertão de Gra­ciliano. É sua obra maior, não só pelo tamanho, mas pela ambição. Longe de ser apenas um mural do povo brasileiro no seu habitat natural — a miséria confinada em porões de uma tirania endêmica. É sua grande obra prima, seu “O Tempo e o Vento”, seu “Guerra e Paz”. O Brasil no porão, explícito, cru, diverso, assustador. Um mural humano com detalhes íntimos de cada figura, cada gesto, cada ação. Nele, vemos que vida não é texto que se costure, a não ser que você costure a vida como um texto.

Em “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos usa técnicas de ficção para contar a verdade. Uma delas é focar uma dúvida da percepção para iluminar o entorno, destacar um elemento protagonista para elucidar pormenores. Invoca-se, por exemplo, com dois vultos fixos vistos na madrugada da janela da sua cela. Não atina o que seja e usa a dúvida para ir narrando sua insônia, feita de migalhas e vivências. Outra técnica é dizer que não lembra de determinados detalhes enquanto outros se tornam abundantes.

Para tornar explícita a miséria social e política, afunda-se na baixa autoestima, como se o personagem que cria — ele mesmo, a vítima de uma injustiça — seja o fruto da escassez que domina o país. A família que descreve — a esposa mesquinha e histérica, os filhos agitadores — tem perfil fictício, o que o deixa à vontade para reforçar o papel de uma situação doméstica opressiva, contra a qual a prisão acaba se oferecendo como uma bizarra solução. O drama se desenrola no varejo, com vingancinhas pessoais, pequenas traições nos gestos e palavras, ruas mal iluminadas, prédios sinistros, funções inúteis, cidadania zerada.

O narrador está no miolo de um drama que se expõe das bordas às vísceras, em que a rotina doméstica é substituída pela falta absoluta de sentido do encarceramento. Graciliano Ramos conta sua história compondo um mural literário inspirado na memória. É o tempo todo literatura, pois os fatos se unem pelo fio narrativo de uma improbabilidade, o mundo sendo definido pela visão amarga e ríspida de alguém que sobrevive à revelia.

Desisti de ler “Recordações das Casa dos Mortos”, de Dos­toiévski, diante dos horrores que ele descreve da vida na prisão da Sibéria. Descubro agora, lendo “Memórias do Cárcere”, que Graciliano Ramos supera o clima descrito pelo gênio russo ao reproduzir as cenas infernais do porão do navio-prisão Manaus. Nem vou citar a sucessão de cenas descritas, pois prefiro me ater a um detalhe importante. O grande escritor, mestre absoluto da língua, era tido como personagem menor pelos bem postados revolucionários famosos.

Foi até confundido com tira, policial disfarçado, pois entrou no navio vestindo terno, gravata, chapéu e levando uma valise. O mal entendido se dissipou, mas ele continuou sendo tratado como um subalterno. É assim mesmo. Um grupo se forma, se autodenomina líder e coloca quem quiser no limbo. Não adianta espernear. Mais tarde, ao ser transferido de prisão, Gra­ciliano conseguiu se ambientar entre os chamados comunas, sempre mantendo a postura crítica, pois para ele o importante era a crueza humana e não sua ideologia. Uma das forças do livro é a produção de pensamento sobre comportamentos em situações limite.

Sua autocrítica é arrasadora. Sentindo-se incompetente para viver em grupo, enxerga-se como um outsider permanente, a passar sua bateia entre os cascalhos das palavras tartamudeadas por ele e ouvidas nas várias cenas que se sucedem na prisão. Uma de suas magistrais lições de literatura neste livro é a composição de personagens. Temos um exemplo no parágrafo inicial do capítulo 9, da segunda parte, do volume 1. Ele ensina como um mestre formata um personagem, que neste trecho do livro tem a função de sintetizar as dissenções internas dos presidiários políticos. “O capitão de nariz comprido esteve conosco dois ou três dias. Nunca lhe ouvi uma palavra, mas vi-o falar em excesso a grupos pequenos, afirmativo, açodado, a examinar os arredores com jeito de conspirador. Sem revelar em público nenhuma opinião, estava sempre a sussurrar um cacarejo indistinto, passeava na assistência minguada os inexpressivos olhos de ave, erguia o bico longo, baixava-o, reproduzia movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. Os cochichos permanentes aborreciam-me, os gestos ambíguos, o proceder furtivo, o conluio visível de meia dúzia de pessoas. Afinal o tipo se sumiu. Na verdade estivera a sumir-se constantemente, a esgueirar-se de um cubículo para outro. Findos esses manejos, bateu asas na fuga definitiva, nem nos deu tempo de gravar-lhe o nome: para mim ficou sendo o capitão de nariz furtivo.”

Outro exemplo é como ele descreve Agildo Barata. No capítulo 13, da segunda parte, do volume 1 , Graciliano traça um perfil primoroso de Agildo Barata, uma personalidade conhecida nas leituras sobre a época das revoluções dos anos 1920 e 1930. Li “A Vida de Um Revolucionário”, de Agildo e também as páginas que a ele se referem em Juarez Távora e outros memorialistas. Jamais tinha tido uma ideia exata da figura até chegar a este parágrafo de ouro.

“Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. Economizava ideias e movimentos para utilizá-los com segurança: moreno, rosto impassível, tinha uns longes de esportista japonês: ligeiro desvio, avanço ou recuo oportuno assegurava-lhe a vitória. Preso, dirigira a sublevação do 3º Re­gimento e tão bem se comportara que, após breve luta, estava no cassino, vigiando os oficiais legalistas vencidos. Faltava um major e ninguém dera pela ausência dele: provavelmente sucumbira na peleja. Súbito o desaparecido invadira a sala, gigantesco, chegara-se ao carcereiro, uma pistola em cada mão. Às desvantagens naturais Agildo somava então inconvenientes acessórios: apanhavam-no de surpresa, sentado, via um sujeito enorme, em pé diante dele, manejando armas. Estou frito, dissera por dentro. E levantara-se para morrer. O colossal major, rubro e afobado, largara as duas pistolas em cima de uma banca e expressara-se veemente: — Rendo-me. Contra a força não há argumento.”

O capítulo todo é dedicado a Agildo, que, segundo Graciliano, tinha a qualidade rara de “apre­ender num instante as disposições coletivas”. O episódio em que Agildo lidera a briga por talheres decentes, em que os presos jogam as refeições no pátio com grande estardalhaço, é de fazer saltar da cadeira.


O texto pelo avesso

A palavra, como Corisco, não se entrega. Tem a vocação da permanência, apesar de fustigada pela passagem da fanfarra. Por um tempo, pode até colorir o discurso, vender sabonete ou escorrer em panfletos de rua. Mas seu destino final, conduzido sob a ética do talento, é refazer o mundo, por pior que ele seja. Mesmo aquele mundo seco, rude, duro do interior de Alagoas, que criou Graciliano Ramos a partir de 1892.

No seu livro “Infância”, ele conta como foi difícil aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa para um país ainda pobre e perdido.

“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente”, diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever, através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos modernistas brasileiros.” Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac, Dostoiévski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava comprar uma gramática paulista para entendê-los.

Logo o “velho Graça” — ex­pressão lembrada, numa crônica, pela sua contemporânea Rachel de Queiroz —, tão cheio de regionalismos: “Graciliano é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. “A partir de ‘Caetés’, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua.” Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o prolongamento dos animais e da paisagem.

Outro contemporâneo, o poeta Ledo Ivo — ex-menino prodígio que em 1933, aos 10 anos de idade, foi cumprimentado pelo diretor de Instrução Pública de Maceió, o próprio Graciliano em pessoa — destaca a análise psicológica do mestre, feita num cenário geográfico e político. “É um escritor elíptico e sumário”, diz, “que se baseou na tradição literária. Ao mesmo tempo, ele é singular por não ter a eloquência do perfil brasileiro. Mas o traço mais marcante da personalidade do escritor é, segundo Ledo Ivo, o da vítima inocente, que so­freu a punição sem culpa.

“Memórias do Cárcere”, seu alentado depoimento sobre um ano de encarceramento em 1936 — quando foi acusado de comunista — e publicado depois de sua morte em 1953, é a obra mais citada por Ledo Ivo: “Além do ressentimento de ter sofrido uma prisão kafkiana, ele tinha uma visão trágica da vida. Era um bicho do mato, um caracol. Vivia recolhido e era avesso à publicidade. Não participava da festa do sucesso dos escritores nordestinos, como José Lins do Rego ou Jorge Amado. Sua glória é póstuma”.
Laços de família tinham aproximado ainda mais Ledo Ivo da casa de Graciliano, que ficava no Rio de Janeiro no início da década de 1940. Foi lá que conversara longamente pela primeira vez, quando o escritor mostrou ao jovem poeta um artigo que este tinha publicado aos 14 anos, sobre “Vidas Secas”.

Esse foi também o início da amizade do poeta com o filho do mestre, Ricardo Ramos. “É curiosa a relação entre pai e filho”, diz a pesquisadora Yedda Dias Lima, do IEB — Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. “Ambos morreram no mesmo dia, 23 de março, vítimas da mesma doença, o câncer, e deixaram, cada um, um livro não concluído.” O pai deixou “Me­mórias do Cárcere” e o filho, que morreu em 1992, quando se preparava para coordenar as festividades do centenário, “Graciliano, um Retrato Fragmentado”, lançado pela Siciliano.

A polêmica que se seguiu à publicação do livro póstumo de Graciliano está relacionado diretamente aos 3500 originais que deixou em poder da mulher, Heloisa e se encontra no IEB desde 1982, sob a responsabilidade de uma equipe coordenada por Yedda. O crítico Wilson Martins chegou a dizer que “Memórias do Cárcere” foi corrigido pelo Partido Comunista.

A fidelidade ao que realmente acontece, o sentido de retidão, a sua recusa à mentira, a sua reflexão profunda sobre a realidade faz de Graciliano um prato cheio para estudiosos como o professor de Literatura Comparada da USP, João Luís Tafetá (1946-1976), autor de um estudo sobre a riqueza e complexidade da obra do escritor. “Ele é a sua própria experiência”, disse Lafetá. “Nele, o fundamental é o modo honesto de contar. O escritor está preso ao real e longe, portanto, da falsidade.” O trabalho, tese de livre docência, enfoca três ângulos principais, que se comunicam internamente. O primeiro é literário, examina as técnicas das formas de narrativa, onde se sobressai o texto neorrealista que acaba transcendendo os rótulos.

O segundo é psicanalítico, que levanta um oblíquo complexo de Édipo em “Caetés” e dois triângulos amorosos: um imaginário em “São Bernardo” — no qual os ciúmes do anti-herói Honório leva a mulher ao suicídio — e outro real em “Angústia”, no qual Luis da Silva, outro anti-herói, acaba matando o rival. Para Lafetá, Graciliano diminui suas personagens e revela os cortes que sofreu ao longo da vida. Ele gosta de citar um trecho de “Infância”: “Herdei a vocação para as coisas inúteis”.

O terceiro enfoque é da linguagem da ironia, que basicamente é uma inversão e procura dizer o máximo num mínimo de palavras. Lafetá estuda a ética da construção da linguagem de Graciliano, raiz da sua exigência e contenção. “Ele cortava tanto seus textos a cada nova edição, que a esposa advertiu que acabaria apenas com páginas em branco”, lembra Fábio Lucas. Yedda conta detalhes da sua técnica de escrever: “Colocava um cigarro ao lado do outro, fora do maço, para não perder tempo. Desenhava uma letra caligráfica, que descia a detalhes da perna da letra a. Quan­do cortava, passava uma régua em cima e abaixo da palavra, riscava no meio e até, ás vezes, um cigarro aceso, para não haver dúvidas”.

Descoberto pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, graças aos seus relatórios quando foi prefeito em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de exemplares, só no Brasil. Alguns deles, como “Vidas Secas”, “Insônia”, “São Bernardo” e “Memórias do Cárcere”, viraram filmes. Ele destacou-se por virtudes que por um tempo foram esquecidas no Brasil. Hoje elas ressurgem como um exemplo para um país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.



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2 comentários:

ida disse...

Obrigado por postar estes textos, que fazem parte do meu ebook AS RUINAS DO DISCURSO. Pedidos para neiduclos@gmail.com

Antonio Siqueira disse...

Perdoe por não avisar, mas não resisti. Trabalho maravilhoso. Vou publicar seu contato, Nei. Abraços

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