O sofrimento que se traduziu em canções maravilhosas
Por Antonio Siqueira
@image: ©johnfisher |
Do turbilhão de adversidades vivido por Eleanora Fagan Gough, conhecida mundialmente como Billie Holiday, parece sequer ter existido, quando ouvimos sua voz divina cantando "Don't Explain", composição da eterna diva do ano de 1944, soando como um mero lamento de um cancioneiro virtuoso. A arte aponta o dedo para o infinito e, certamente, você se indagaria: “Mas como o mundo pode ser tão perverso com alguém tão excepcional?”. Pode. E a arte é quem produz essa salvação de talentos e almas. A dor que se fez música.
Suas tragédias pessoais começaram ainda na infância. Aos 10 anos, Billie foi estuprada por um vizinho. Típico da postura machista que até hoje cerca a violência contra as mulheres, ela acabou sendo “condenada” pelo ato e foi presa em um reformatório para jovens delinquentes, onde viveu mais uma brutal violência: como punição para seu “mau comportamento”, foi jogada em uma cela, durante toda uma noite, com o cadáver de um rapaz.
Quando finalmente foi libertada, Billie mudou-se com sua mãe para Nova Jersey, em pleno período da Grande Depressão nos EUA, e como muitas crianças negras da época, trabalhou como empregada doméstica. Odiando este tipo de trabalho, com apenas 14 anos Billie tornou-se prostituta em um dos mais famosos bordéis do Harlem, o bairro negro e boêmio de Nova York, uma atividade que lhe rendeu uma nova passagem pela prisão.
Disposta a sair da miséria, Billie Entrou em um bar do Harlem, ofereceu-se como dançarina, mostrando-se um desastre. Penalizado, o pianista perguntou-lhe se sabia cantar. Billie cantou e saiu com um emprego fixo. Aos 15 anos, ela já estava cantando em vários clubes noturnos e aos 18, gravou seu primeiro disco. Nos anos seguintes, Billie cantou acompanhada de alguns dos melhores músicos e cantores negros de sua época, como Teddy Wilson, Duke Ellington, Count Bessie, Bessie Smith, Lester Young e Buck Clayton. Apesar do sucesso, desde o início, os problemas não cessaram. O racismo, por exemplo, acompanhou sua carreira das formas mais absurdas. Quando ainda cantava com Count Bessie, um empresário de uma casa noturna a obrigou pintar o rosto com graxa preta, por considerá-la “clara demais”. Billie, tornou-se uma das primeiras mulheres negras a cantar com uma “big band” de brancos (dirigida por Artie Shaw), mas os problemas continuaram: os produtores recusavam-se a gravar as músicas produzidas pela banda e Billie, várias vezes foi discriminada, inclusive nos hotéis nos quais o grupo se hospedava durante as turnês (que a obrigavam a utilizar o elevador “de serviço” e a proibiam de circular entre os hóspedes “regulares”), o que acabou resultando na saída de Billie, em protesto contra a situação.
Havia, também, o Café Society, clube da pesada que tinha como lema, “o lugar errado para pessoas direitas” e único lugar onde não tinha vez a segregação racial. Billie teve visibilidade nacional e foi contratada em 1939 por Barney Josephson, o empresário judeu e ativista antirracista que criou o clube, Billie tornou-se um imediato sucesso.
Sucesso em muito relacionado com uma de suas interpretações mais vigorosas e polêmicas: a música “Strange Fruit”, uma poderosa balada cujos versos mencionam que das árvores dos ultra-racistas estados do Sul dos Estados Unidos brotam “estranhos frutos” — “corpos negros que balançam na brisa sulista”, em alusão aos enforcamentos praticados pela Klu Klux Klan e outros grupos racistas que empestavam os estados sulistas.
Aliás, o racismo ainda era uma triste realidade nos EUA da década de 1940. Mas não foi só o racismo que contribuiu para a derrocada da Diva; seus casamentos foram desastrosos. Casou com Jimmy Monroe que a traiu de todas as formas. Foi desta relação frustrada que nasceu o clássico, "Don't Explain”. Pior ainda foi a união com o trompetista Joe Guy, que além de a ter levado praticamente à falência parece ter sido responsável pela introdução de Billie no mundo do ópio e, posteriormente, da heroína. Um terceiro casamento, desta vez com Louis McKay, foi igualmente desastroso. Em 1946, já bastante famosa, Billie foi chamada por Hollywood para fazer o filme “New Orleans”, com Louis Armstrong. Típico da indústria cinematográfica, o papel reservado para ela foi de uma empregada doméstica. Um papel que aceitou fazer para estar ao lado de seu ídolo desde a infância, mas sobre o qual ela protestou publicamente.
O longo e doloroso caminho ladeira abaixo se acentuou em 1947, quando a cantora foi presa por porte de heroína, ficando na cadeia por cerca de um ano, algo que raramente teria ocorrido com uma “celebridade” branca (muitas delas, no mundo do cinema e da música, notórios consumidores de drogas das mais diversas). Além da prisão, Billie teve que amargar, até o fim de sua vida, a total proibição, por parte da polícia, de se apresentar em qualquer clube nova-iorquino, o que em muito prejudicou sua carreira. Apesar de inúmeros sucessos que sucederam esse episódio — como as espetaculares gravações de “Fine and Mellow” e de “I loves you, Porgy” (da “ópera negra” “Porgy and Bess”, escrita por George e Ira Gershwin) e uma ultra bem sucedida turnê pela Europa, em 1954 — a decadência de Billie era evidente. Ao voltar da Europa, a cantora foi presa novamente, desta vez na Filadélfia, que também a baniu para sempre de seus clubes. A experiência fez com que ela procurasse ajuda, internando-se numa clínica de reabilitação. No entanto, o abandono da heroína foi acompanhado pelo mergulho em três litros diários de vodka ou gim.
Com o fígado e o coração destruídos, Billie Holiday morreu na manhã de 17 de julho de 1959. Os capítulos finais de sua vida foram lamentavelmente dignos de uma trajetória marcada pela pobreza, pela perseguição policial e pela tragédia: Billie recebeu voz de prisão enquanto agonizava em seu leito de morte e no momento da autópsia os médicos encontraram US$ 750 que Billie havia escondido sob sua roupa. Era todo dinheiro que lhe restava, além de 70 centavos que estavam em sua conta corrente.
Inigualável! Billie foi referência fundamental para música contemporânea e para cantoras que vão de Janis Joplin a Nina Simone. Billie deixou gravado em sua autobiografia, “Lady sings the blues” (que recebeu uma – fraca – versão cinematográfica, em 1972, com Diana Ross interpretando Billie) uma frase que em muito sintetiza sua vida e suas melancólicas interpretações: “Eu vivi músicas como estas”.
No dia 7 de abril de 2015, daqui a quase exatos dois anos, Billie completará 100 anos. Não faltarão tributos, reverências e homenagens póstumas. Como no passado, os bons morrem muito jovens, parece uma regra com pouquíssimas exceções. Com o que se tem e se faz atualmente, uma bela voz aqui, um arremedo de fenômeno ali, não é pecado abraçar o passado quando assunto é a primeira arte. Billie Holiday descansa em paz deixando um legado impressionantemente belo para todas as gerações e influenciando fortemente a musica contemporânea universal.
Billie Holiday - The Legacy: 1933-1958 Disc 1 [Full Length Album]
Thanks to the brilliant english caricaturist John Fisher, by granting its creation to illustrate this article on Bilie Holiday. Thank you very mach, my friend John!
Você encontra mais do trabalho de John fisher em John Caricatures.
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7 comentários:
Uma prova de resistencia!
A vida pode ser dificil,mas eh na dificuldade que se pode encontrar o caminho para o sucesso,e ser feliz. Fazendo o que gosta,vindo do coracao,a emocao flui e eis que surge essa maravilha!!
Parabens,Antonio Siqueira!!
Texto impecavel!!
Uma bela homenagem, mais do que merecida,a esta Diva.
História triste, mas como tu mesmo frisastes, deixando um legado inigualável.
Eloy
DIVA MARAVILHOSA!
Você escreve como poucos, meu amigo e este artigo está completo. E sempre fazendo parcerias muito legais como a da charge deste excelente desenhista inglês. Very good pra caramba!
...traigo
ecos
de
la
tarde
callada
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...
desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ
COMPARTIENDO ILUSION
ANTONIO
CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...
ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE DJANGO, MASTER AND COMMANDER, LEYENDAS DE PASIÓN, BAILANDO CON LOBOS, THE ARTIST, TITANIC…
José
Ramón...
Muy lindo, José Ramón Vázquez Santana. Bienvenido a Arte Vital Blog.
DAS COISAS MAIS LINDAS QUE JÁ OUVI EM TERMOS DE VOZ. CANTANDO PARA DEUS, COM CERTEZA. ELE PERDOOU OS PECADOS DELA.
Anônima
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