segunda-feira, 29 de abril de 2013

Paulo Vanzolini: Entrevista magnífica a Fernando Toledo e Aurea Alves em 2004



   

      Morreu hoje, aos 89 anos, Paulo Vanzolini. Compositor dos clássicos, “Ronda”, “Volta por cima”,  “Cuitelinho” . Este homem era uma multi-enciclopédia. Vanzolini trabalhou para o Museu de Zoologia até 1993, quando teve aposentadoria compulsória, depois de três décadas no cargo. Outro destaque em sua carreira científica foi sua contribuição para o desenvolvimento da teoria dos refúgios, em conjunto com o geógrafo Aziz Ab'Sáber. A hipótese afirmava que as mudanças regulares no clima teriam ajudado a gerar mais espécies. Autor de mais de 70 músicas, Vanzolini preferia ser reconhecido pelo seu trabalho como zoólogo. Como cientista, ele escreveu mais de 150 artigos acadêmicos, sendo premiado pela Fundação Guggenheim, em Nova York, pelo conjunto de sua obra científica.

      Aqui, Fernando Toledo, morto em 2006 e Áurea  Alves, mostram em excelente entrevista, concedida por Vanzolini em 2004, as mil e uma maravilhas deste gênio da arte e da ciência.




PAULO VANZOLINI - A ARTE E A CIÊNCIA 

Entrevistadores: Fernando Toledo e Áurea Alves.

Paulo Vanzolini
     O gabinete, no Museu de Zoologia da USP ( no bairro do Ipiranga), possui uma decoração incomum: esqueletos de lagartos e jacarés, vidros contendo cobras mergulhadas em formol, papéis em profusão e livros, muitos livros, em diversa línguas. O senhor de 79 anos que nos recebe e conduz com desenvoltura no ambiente veste um jaleco cinza, está com barba crescida e branca. Possui uma voz bastante forte, com a qual enumera um sem número de casos, quase sempre "muito" engraçados" - como ele próprio os classifica - acerca de personalidades da política , do meio acadêmico, da Música Brasileira.

      Este senhor é o diretor do museu, um dos maiores cientistas do mundo em sua área e um dos mais significativos compositores deste País. Curiosamente seu nome não é ligado, pelo grande público, a suas criações imortais. Duvidam? Perguntem em qualquer barzinho da esquina, quando o músico de plantão estiver executando Ronda, quem é o autor da canção. O mesmo quanto a Volta Por Cima, expressão de sua autoria que passou mesmo a integrar dicionários. O nome deste senhor? Paulo Vanzolini, o maior especialista do País em um ramo não muito divulgado da Zoologia, a Herpetologia, ou seja, o estudo dos répteis. Em ambas as atividades, conviveu e trabalhou sempre com os melhores, ombreando-se com eles.

      Este homem incrivelmente talentoso, de uma deliciosa arrogância e simpatia peculiar, teve sua obra quase completa revista este ano em um CD que considera definitivo, ACERTO DE CONTAS, em que suas composições são executadas por artistas do nível de Chico e Cristina Buarque, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Carlinhos Vergueiro, Eduardo Gudin e outros, resultando numa obra belíssima e indispensável. Pois bem, leitores dO PASQUIM 21, preparem-se, pois aí vem um homem que diz absolutamente tudo o que pensa, sobre tudo e todos, sem medo ou remorsos, mas com toda autoridade: Paulo Vanzolini. (FERNANDO TOLEDO).


Fernando Toledo - Uma coisa me impressiona muito: é o apuro melódico de suas composições. A maior parte de suas músicas não têm parceiros, apenas umas dez músicas foram compostas em parcerias, e o senhor, que eu saiba, toca só caixa de fósforos.

Paulo Vanzolini - Nem de caixa de fósforos (risos). Alguém arrumou um show, e éramos eu e o Paulinho Nogueira ( violonista e compositor, falecido este ano), num congresso de jornalistas. No fim, o Paulinho virou para os jornalistas e disse:" Vocês são ótima gente, mas não concordo com vocês baterem palmas para a única pessoa que não sabe a diferença entre tom maior e tom menor" (risos). O Paulinho era um pouco mais novo que eu, mas era meu amigo de mocidade.

Toledo - Isto me impressiona muito. Eu ouço composições como Samba Erudito e Capoeira do Arnaldo e não entendo como o senhor consegue.

Vanzolini - Rapaz, a gente aprende no rádio. Chico Buarque, por exemplo. Todo mundo aprende samba no rádio. Vai ouvindo e vai ouvindo e vai sedimentado dentro da sua cabeça. E não tem tanta novidade assim. Vou lhe dizer uma coisa: qualquer bom violonista, eu canto o samba pela primeira vez e ele me acompanha. Todas as músicas eram acompanhadas por gente assim: Luis Carlos Paraná, Adauto Santos, o (Eduardo) Gudin. A primeira vez que eu cantava eles saíam acompanhando porque a melodia não tem novidade nenhuma. É tradicional mesmo.

Àurea Alves - Vamos voltar um pouquinho na história: o senhor teve um convívio anterior, tem nível superior e seu pai também era professor.

Vanzolini - Meu pai era professor.

Áurea - E o senhor deve Ter tido um bom relacionamento com a intelectualidade e contato com música.

Vanzolini - Meu bisavô já era intelectual na Itália. Ele traduziu o De Rerum Natura, de Titus Lucretius Carus (célebre tratado de História Natural), para o italiano. Era um erudito de província, mas era erudito (risos gerais).

Toledo - Vem de longe então a coisa.

Vanzolini - Meu avô era professor de ginásticas lá em Campinas.

Áurea - De onde era a sua família na Itália? De que região?

Vanzolini - Quem veio para o Brasil foi meu bisavô, que era calabrês. Foi um dos construtores da Colônia Cecília, experiência anarquista no Paraná. Foi na Fazenda dele, em Palmeiras. O Rossi (Giovanni Rossi, teórico italiano que imigrou para o Brasil a fim de fundar a colônia) era amigo dele. Meu bisavô saiu da Itália porque era anarquista. Saiu com a polícia atrás, foi ser médico de navio, desceu em Paranaguá, gostou doBrasil, comprou uma fazenda e ficou.

Toledo - Em que período?

Vanzolini - Em 1870 ele veio da Itália.

Áurea - E essa fazenda...

Vanzolini - Hoje é o município de Palmeiras (São José das Palmeiras).

Áurea - Teve alguma atividade anarquista além da fazenda?

Vanzolini - Teve a Colônia Cecília, a Colônia Cecília foi em Palmeiras. Aliás, em Santa Bárbara, que é encostado ali. O Rossi era um sujeito muito engraçado, ele queria provar que o anarquismo era viável, mas, você imagine, a Colônia Cecília acabou em briga de faca. Porque o Rossi achava que o grande erro era a propriedade, a propriedade se baseia na família, então cada mulher devia ser casada com dois ou três homens, para ninguém saber de quem era o filho. Para não Ter propriedade. Ora, você bota isso no meio de italiano, acaba mal (risos gerais). Na primeira vez que eles começaram a trocar de mulher, acabou em briga de faca ( muitos risos). O Rossi era de Pisa, na Itália. Ele escreveu um livro (Il Comuna in Riva al Mare) sobre uma colônia anarquista perfeita, mas era tudo da cabeça dele (risos). E quando Dom Pedro II chegou na Europa, estava procurando um agrônomo para modernizar a Agricultura no Brasil. Apresentaram ele ao Rossi. E ele disse :" Vamos pro Brasil". E o Rossi: " Mas eu sou anarquista". E ele disse: "Dom |Pedro, e daí?" (como se estivesse se apresentando). Uma das razões pelas quais acabou a Colônia Cecília foi porque, com a República, passaram a cobrar imposto. Dom Pedro II tinha dispensado s Colônia de impostos. Porque anarquista não pode pagar imposto (risos). Porque está fora do regime capitalista, né? O Rossi era um cara muito engraçado: ele tinha uma filha que ele não sabia se era dele ou de um amigo dele.

Áurea - Mas criou.

Vanzolini - Criou, eles eram gente muito boa, veja que maluquice: o mal é a propriedade; a propriedade se baseia na paternidade; vamos apagar a paternidade.
Toledo - Voltando à música. Eu estava lendo a contracapa do disco Onze Sambas e uma Capoeira, e vi uma citação do Chico Buarque, dizendo, na época, que conhecia o senhor há vinte e poucos anos.

Vanzolini - O Chico tinha dois anos quando o conheci. Era muito amigo do pai dele. O Sérgio era meu grande amigo. Nesse filme que estão fazendo, o longa-metragem sobre Sérgio Buarque de Holanda, sou um dos que deram depoimento. O Sérgio chegou aqui em 1946 para ser diretor do Museu Paulista (Museu do Ipiranga). Eu ia toda noite na casa dele, na Rua Haddock Lobo. O Chico tinha dois anos. Miúcha, que era a mais velha, tinha nove. Tinha Sergito, Álvaro e Chico. Os outros três nasceram depois, já nasceram aqui em São Paulo. Chico foi o último que nasceu no Rio.

Áurea - E havia um convívio musical? (a secretária interrompe parsa confirmar se ele está preparado para a aula no dia seguinte. Atende e retorna).

Vanzolini - Lógico! Maria Amélia, a mãe dele, era a maior cantadora de samba, era a maior fã de Ismael Silva. As tias de Chico, irmãs de Maria Amélia... Olha, a Miúcha é cantora.

Toledo - E todas as outras irmãs também são.

Vanzolini - No meu disco (Acerto de Contas), as três estão.

Toledo - A Pií , a Ana, a Miúcha... Ih, esquecemos a Cristina.

Vanzolini - São quatro! A Cristininha! A minha predileta, desde que nasceu.

Toledo - O Chico diz que o senhor tem uma ligação muito grande com a tradição oral musical.

Vanzolini - Tenho boa memória, viajei muito. Gosto. Tenho que Ter.

Áurea - Ele diz categoricamente que, apesar de Ter dois anos e meio na época, o senhor influenciou, na paixão pelas rimas.

Vanzolini - O Chico nasceu sabendo. É bobagem falar em Chico porque ele tinha 18 anos quando fez Pedro Pedreiro, é uma música "imelhorável" (neologismo do Dr. Paulo), nunca ninguém fez uma letra melhor que a de Pedro Pedreiro. Pode Ter feito igual, melhor ninguém fez. E aos 18 anos!

Toledo - E o senhor ainda mantém o hábito de desafio?

Vanzolini - Não, nem de compor. Estou com 79 anos, rapaz.

Áurea - E agora vive de glória (risos).

Vanzolini - Não, tenho de trabalhar na coisa que eu gosto, que é o meu serviço aqui.

Toledo - O senhor estudou Medicina, certo? E esse interesse por répteis, especificamente?

Vanzolini - Quando tinha dez anos de idade, fui no Butantã (Instituto Vital Brazil) em São Paulo e me apaixonei.

Toledo - Herpetologia não é exatamente uma área muito comum...

Vanzolini - Não é? Tem muita gente...

Toledo - E o senhor dá aulas e dirige este museu ainda hoje?

Vanzolini - Sim.

Áurea - Eu observei, na sua história, o contato com o rádio. O seu primeiro emprego foi na rádio América.

Vanzolini - Não foi emprego: um primo meu era speaker da Rádio América - nossas mães eram irmãs, eles eram de Campinas e ele morava na casa da minha mãe - e eu ia todo dia lá encontrar com ele na rádio, foi aí que fiquei amigo da Cacilda Becker, de Raul Duarte e todo esse pessoal, meus amigos do rádio. Por intermédio desse meu primo, que se chamava Henrique Lobo.

Áurea - Nesse processo o senhor já estava compondo as suas músicas?

Vanzolini - Não, comecei a compor na década de 40. É, por aí. Um dia dei tanta risada, fui tomar um táxi no supermercado para ir para casa, e o chofer perguntou: "O senhor fez uma música chamada "Borboleta Azul?" Eu disse: "Fiz , aí por 1940..." E o taxista: "Os estudantes de Direito estão dando "pindura" cantando "Borboleta Azul", de Paulo Vanzolini". Nós tínhamos uma turma de estudantes pobres, e nossa farra era tomar um negócio chamado "samba em Berlim", que era guaraná com cachaça, e arrumar encrenca no baixo meretrício. E uma noite um dos nossos, que até morreu, já com desembargador, chegou bêbado e disse: "há uma borboleta azul tramando contra a mocidade acadêmica. Unamo-nos contra ela!" Então nós formamos esse Clube da Borboleta Azul (risos). O negócio era beber "samba em Berlim" no meretrício. Mas aí eu fiz a música e a estudantada hoje canta pra dar "pindura". O negócio da "pindura" era muito interessante. Hoje mudou muito. A maior parte do pessoal tinha bom humor e não gastava muito. Mas tinha, por exemplo, um restaurante - esqueci o nome -, bem lá no Centro... Na Avenida Ipiranga, e esse não dava "pindura", porque quando entrava rapaz novo eles não serviam. "Entonces": "É lá que nós vamos dar". Tinha um amigo nosso, chamado Dagoberto Zimmermann, que era um homem que parara de estudar e aos 40 anos voltou para a faculdade. Era um gordo, bigodudo... Então, foram dois rapazes, lá nesse bar, e disseram que eram corretores de terrenos da Companhia City (grande empresa imobiliária da época), e que queriam dar um banquete em homenagem ao gerente de vendas. O que convenceu mesmo o dono do restaurante foi que eles discutiram tanto o preço e disseram: "Pode Ter licor, pode Ter charuto..." Chegamos lá, comemos e tudo, e o Dagoberto chegou pro dono do restaurante e disse: "Olha, a meninada quer pagar isso, mas eu não aceito". Tirou um cartão de gerente da companhia: "Manda Segunda-feira pro escritório..." O garçom parou: "Não, não, não!" Foi a maior "pindura". Mas hoje tem uma coisa engraçada: a gente às vezes ia preso, chegava lá dava um pique-pique pro delegado e saía. Mas agora tem muito delegado formado em outras faculdades, tem raiva de advogado, e bota a turma no xadrez.

Áurea - Após a descontração, vamos voltar. Doutor Paulo, o senhor compõe a partir de situações, a partir de experiências suas?

Vanzolini - Não. Não. Na hora de compor, pego um tema e faço. É muito mais serviço do que outra coisa, do que inspiração.

Toledo - O Thomas Edison dizia isso: 90% de transpiração e 10% de inspiração. Uma música do senhor que me marcou muito, uma com a qual tenho uma relação histórica pessoal com ela, é a Capoeira do Arnaldo...

Vanzolini - Isso porque o Carybé ( artista plástico argentino, radicado na Bahia), que era muito amigo nosso, chegou aqui em São Paulo e foi quem trouxe a capoeira baiana aqui para São Paulo. E aí, o Arnaldo Horta (artista plástico e crítico paulista), que era muito amigo meu, chegou e disse: "Você é um merda, porque esse gringo aí cheio de capoeira e você nunca fez nenhuma". Eu disse: "Amanhã te trago uma". E fiz naquela noite mesmo.

Áurea - O senhor conviveu com personalidades muito importantes da formação artística do Brasil.

Vanzolini - A grande vantagem de São Paulo era essa: que não havia a idolatria da celebridade. O primeiro centro de encontro deles era a sede dos Diários Associados, na rua Sete de Abril. E o dono, Chateaubriand, contratou esse malandro maldito italiano. O Bardi (Pietro Maria Bardi, professor, jornalista e crítico de Arte genovês), para fazer um museu.

Áurea - O MASP (Museu de Arte de São Paulo).

Vanzolini - Isso. O museu era no segundo andar do edifício dos Diários Associados. Tinha um barzinho, era um lugar barato e bom. E a gente se encontrava então, seis e meia, sete da noite para tomar cerveja e bater papo: Sérgio Buarque, Arnaldo Horta, Mário Neme, Antônio Cândido, Paulo Emílio (Sales Gomes), todo esse pessoal. Isso era o bom de São Paulo: eu, que não era ninguém, podia bater papo com Sérgio Buarque com a maior intimidade e aproveitar prá burro.

Áurea - E durante a década de 60 veio a aproximação com outros artistas, mais novos?

Vanzolini - Nunca houve essa coisa de mais novo e mais velho, os meninos iam entrando na roda da gente, como eu entrei na roda dos mais velhos eles entravam naturalmente. Era uma coisa muito engraçada, da qual senti muita falta nos Estados Unidos, uma profissão que se chama ser "intelectual". Nos Estados Unidos conheci todos os grandes homens da minha profissão e nunca conheci um escritor, um músico. E, na minha profissão, conheci todos os grandes do mundo. Agora aqui, não. O Sérgio (Buarque), o Arnaldo Horta, um grande jornalista, um grande artista plástico, eram meus íntimos amigos.

Toledo - Quando surgiu a questão da fonografia, de pegar e gravar uma canção sua?

Vanzolini - Foi o Marcus Pereira(publicitário, findador da gravadora de mesmo nome, que se suicidou em 1982). Eu tinha um velho amigo na noite, que era o Luís Carlos Paraná. Tinha dois amigos, na verdade: um era o Zé Henrique, chamado Zelão, que era um crioulo aqui do Morro do Piolho, no Cambuci, que é um dos lugares autênticos de samba em São Paulo. E o Zelão entrou num conjunto, tipo Bando da Lua (grupo que acompanhava Carmem Miranda), e pegaram um empresário malandro que os levou para fazer uma turnê pela América do Sul e os largou no Chile sem dinheiro para voltar para casa. Sumiu. Eles voltaram, se repratriaram e tudo. Um dos violonistas morreu, e o Zelão tocava dois violões num só, fazia o acompanhamento de dois violões num só, Paulinho Nogueira me disse que ele conheceu umas quatro ou cinco pessoas, Bola Sete, Garoto, que eram capazes de fazer isso. E ele veio para cá e guiava o caminhão do cunhado dele na feira. Mas um amigo nosso, um arquiteto chamado Silioma Seltter, professor da (faculdade) Mauá, que gostava muito de samba, levava o Zé Henrique no clubinho onde ele tocava, eu passava o chapéu e ele pegava o dinheiro. Aí uma maluca que tinha lá arrumou para ele o emprego de ser cantor no inferninho de umas paraguaias (risos). Um dia as paraguaias chegaram prá ele: "Sêo Zé, você é bom demais para tocar em inferninho. Vamos fazer um negócio: nós te emprestamos um dinheiro a juros e o senhor abre um bar seu". E aí o Zé abriu. Como ele cantava muito a música do Sérgio Ricardo, Zelão (Todo mundo entendeu/Quando Zelão chorou..."), o bar dele tinha esse nome. E era na rua Peixoto Gomide, perto da rua Augusta. Em frente tinha um inferninho chamado Sambalanço, onde cantava o Luís Carlos Paraná. Na folga do Luís Carlos, ele atravessava a rua e a gente ficava batendo papo. E o Marcus Pereira, que tinha uma agência de publicidade, era muito amigo do Luís Carlos. Aí, um menino que quando era menino tinha fama de precisar de babá, e depois quando ficou banqueiro passou a perna em todo mundo, o Charlô, resolveu dar um brinde para os fregueses do banco dele, um brinde de Natal. E saiu Onze Sambas e uma Capoeira, que não foi um disco comercial, foi um brinde de Charlô.

Toledo - Mas antes disso, já havia músicas suas gravadas, certo?

Vanzolini - Tinha duas músicas gravadas, tinha Ronda..

Toledo - Com a Inezita Barroso (cantora de música folclórica).

Vanzolini - Minha mulher era muito amiga da Inezita, e a Inezita foi pro Rio para gravar Moda da Pinga.Chegamos lá no Sábado de manhã. O cara chegou e perguntou: "E o lado B?" Inezita não sabia que disco tinha lado B. Cantora,né? (risos). Aí, precisava não só que ela tivesse uma música, mas também a autorização do autor. Então eu estava lá e dei autorização. Olha, e foi uma coisa muito engraçada, porque tinha três instrumentistas de corda discutindo o que cada um ia tocar. Um deles falou: "Olha, o que sobrar é meu", esse era o Menezes (Zé Menezes, que se tornou conhecido como Zé Carioca). Os outros eram o Garoto e o Bola Sete. Garoto foi muito meu amigo até morrer. E o clarinetista era o Abel Ferreira.

Toledo - (pasmo) Puxa...

Vanzolini - Essa foi a primeira gravação de Ronda, improvisada no estúdio, porque eu estava lá para dar a assinatura. Depois fiz Volta Por Cima e dei pro Zé Henrique. Mas o Zé Henrique disse prá mim: "Olha, briguei com a gravadora, mas o Borba, que era um advogado que tinha lá, arranjou uma chance pro Mário gravar. Ainda brinquei: "Seu Zé, samba é que nem osso, tá na rua vai na boca de qualquer cachorro". O Mário era o Noite Ilustrada, que ainda não era o Noite Ilustrada, que se chamava só Mário. Essa duas eu tinha gravado só, antes em disco. Mas eu não tenho idéia até hoje, de fazer música profissionalmente.

Áurea - "Volta por cima" é uma expressão que já existia na época?

Vanzolini - Não, fui eu que inventei. Você vai ver o que se chama o peso da vaidade... (levanta-se e vai até um armário baixo). Um dia, estou aqui, me ligaram e disseram: "Você sabe que você está no Aurélio? 'Volta por Cima' está no Aurélio". Eu vim aqui, e na hora que fiz assim (se curva e abre a gaveta) para pegar o Aurélio, saiu a vértebra do lugar (risos gerais).

Áurea - Sua produção sempre fluiu, o senhor sempre compôs? Nos papos com os amigos, nas rodas...

Vanzolini - Compunha dentro da minha cabeça, porque compor dá muito trabalho. Nunca compus para gravar. Por exemplo: tinha um arquiteto aqui em São Paulo que tinha o que eles chamavam de uma estrada de ferro subterrânea, para tirar gente perseguida pelos militares do Brasil e passar chileno, paraguaio, para a Europa. E com eu tinha facilidade de viajar por causa do Museu, às vezes eu ia com ele. E um dia nós estávamos no rio Paraná, e tinha um outro amigo nosso, chamado Antônio Carlos Xandó, que esse é que foi a dor-de cabeça. Esse barqueiro, chamado Augustão, o que passava o pessoal escondido, esse cara sabia uma música linda, ele me ensinou a música e fiquei apaixonado, e depois nós cantávamos a música no Jogral. Uma vez viajei e quando voltei o Marcus Pereira tinha registrado a música como minha, que é o "CUITELINHO". E prá botar o Carlos Xandó no direito autoral? Consegui, mas foi quase um ano a mexer em direito autoral, para poder botar o Xandó como autor, porque na realidade quem pegou a música no folclore mesmo foi o Xandó.

Áurea - Qual o nome do arquiteto?

Vanzolini - Luiz Saia.

Áurea - Então, naquele momento o senhor ajudou os presos políticos.

Vanzolini - Isso era obrigação da gente. Aliás, vou dizer: a coisa que me custou mais caro na vida foi Ter protegido presos políticos (rindo), pois o que tem de mau caráter no meio deles, que depois faz ingratidão! É terrível, mas se você tiver que fazer de novo você faz, não tem escapatória, de ser contra. Mas saiba que depois metade deles vem e te morde pelas costas.

Áurea - Foi uma experiência que durou muito tempo? Eventualmente lhe chamavam para ajudar?

Vanzolini - Não... O Golbery me chamou à Brasília. É que naquele tempo, eu tinha um barco no Amazonas, para fazer minhas pesquisas, e os militares me tomaram os barcos. O Golbery me chamou, foi uma coisa ridícula, porque tinha um amigo meu me esperando no aeroporto, pegamos uma limusine, entramos na garagem subterrânea, entramos num elevador e depois pegamos outra limusine, fomos para outra garagem subterrânea, e aí é que chegamos ao Golbery.

Áurea - Isso em Brasília?

Vanzolini - Em Brasília. Mandou para ele passagem, diárias e tudo. Encontramos o Golbery que diz: "Gostamos muito do seu trabalho na Amazônia, mas tem uma coisa muito séria: é que o senhor só escreve em inglês". Respondi: "E daí?" "Não, é que o Secretário da Amazônia precisa estar a par do seu trabalho, dos estudo de Zoologia". Respondi: "General, quem não entende inglês, não entende os meus trabalhos em português". "Essa é uma atitude que pode lhe custar caro". Respondi: "Depende" "Depende de quê?" "Depende de quem durar mais: vocês ou nós" - quem durou mais fomos nós.

Toledo - Como foi desenvolvido esse trabalho de pesquisa na Amazônia, ligado à Hepertologia? Surgiu uma bolsa, foi idéia do senhor?

Vanzolini - Eu ia sempre que podia. O Museu tem verba de viagem, tem Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), dinheiro para a pesquisa no país nunca faltou. Cientista brasileiro que se queixar de falta de dinheiro pode botar na quarentena porque é malandro.

Áurea - Talvez faltem bons projetos?

Vanzolini - Não, o que falta é gente honesta para trabalhar, falta gente séria, tem muito sem-vergonha. A pior que aconteceu para a pesquisa no Brasil foi a criação do CNPq e Fapesp. Porque, agora, a pós-graduação virou emprego. Primeira coisa: antigamente, quando fiz pós-graduação, a minha tese queria dizer que, então, eu conhecia a Literatura, conhecia a Problemática, tinha as ferramentas e fiz uma tese, que é coisa séria, então eu era um profissional. Agora, não, se quiser um emprego em Feira de Santana tem que Ter mestrado ou doutorado. Hoje em dia, ninguém entra na pós-graduação para ser cientista, entra para conseguir emprego. Uma vez que consegue bolsa de pós-graduação, como emprego fora está difícil, espicha a bolsa o mais que pode, por quatro, cinco, seis anos. Fiz o meu Doutoramento em Harvard em cinco semestres. Hoje, em cinco anos ninguém faz mestrado. O Brasil está numa hora muito ruim, na minha opinião por excesso de dinheiro.

Áurea- Há necessidade de uma política para a Universidade, para pós-graduação e aplicabilidade de projetos.

Vanzolini- A coisa está num mercantilismo tal que uma amiga minha chegou e disse que lhe haviam negado uma bolsa na Fapesp. Telefonei para lá e perguntei porquê. Disseram era porque a idade dela era de 52 anos e não davam bolsa para pessoas nessa idade, só para mais jovens, porque estavam investindo no futuro e uma pessoa de 50 anos não dava retorno. Noutro dia, recebo e-mail de uma argentina: " Ouvi dizer que o CNPq do Brasil está oferecendo bolsas argentinos, é verdade?" Liguei para o Conselho: "Meu nome é Paulo Vanzolini, sou do Museu de Zoologia e queria uma informação". Do outro lado: "CPF por favor?" Para atender telefone! Eu disse: "Estou falando com uma moça, vou acabar minha conversa aqui". Tem um negócio chamado currículo. Eu me descredenciei faz uns três meses da Pós-Graduação, da cadeira de História da Ciência, em que era orientador, para não preencher o currículo, que é uma coisa feita para burocrata dar nota a cientista, chama-se Lates. Você imagina? Cada trabalho que você fizer tem que botar o ISS da revista, eu tenho 150 trabalhos publicados, você acha que eu vou ficar desencavando ISS de revista? E outra coisa, qualquere profissional sabe se esta revista é ruim ou boa. Agora, o burocrata é que quer mandar, e manda porque o dinheiro é dele.

Toledo - Eu já tive uma experiência assim, tive uma bolsa do CNPq.

Vanzolini - Não sou pesquisador do CNPq. Vou mostrar para você uma coisa que ponho em todos os meus trabalhos agora (levanta-se vai até a outra escrivaninha e pega um trabalho impresso): este trabalho não foi ajudado por ninguém, por agência nenhuma, nem por CNPq. O Diretor da Fapesp me perguntou quando iria tomar café com ele, eu respondi: "Quando você tiver Assessor de Zoologia, porque o que você pensa que é assessor de Zoologia, julgando pela ignorância é ecólogo, julgando pela arrogância é da Unicamp"; ele respondeu: "Acertou nas duas". (risos gerais). A Unicamp tem coisas fabulosas, sabe quem até o ano passado era o presidente do Conselho de Ética na Faculdade de Medicina da Unicamp? Badan Palhares. (gargalhadas).

Toledo - O legista ficcionista!

Vanzolini - Isso é feito para gozar.

Toledo - Medicina legal de ficção, o cara é criativo, a gente há de ouvir. Mas, retornando ao fio da meada: em 1962, época da gravação do Volta por Cima (Noite Ilustrada).

Vanzolini - Data, não sei nenhuma.

Toledo - Como foi a sensação de ouvir uma música sua no rádio?

Vanzolini - Vou mostrar uma coisa (levanta e nos convida para ir ao fundo de seu gabinete, onde há várias estantes enormes, repleta de livros de Zoologia em várias línguas, a maioria especializado em répteis). Isso aqui comprei com direitos de Volta por Cima. Foi a única coisa que ganhei com música (voltamos a sua mesa).

Áurea - E a relação de seu trabalho com a questão do meio ambiente?

Vanzolini - Essa, menina, a Osmarina (Marina Silva, Ministra do Meio Ambienta). Ela é louquinha. Conheço muito bem, porque trabalhei no Acre e em Rondônia toda a minha vida.

Áurea - E ela é louquinha em que sentido?

Vanzolini - Ela é histérica, aprendeu a ler com 17 anos e nota-se Ela entrou no convento para aprender a ler. Ela não é de direita, mas é completamente incompetente no prático.

Áurea - E ela não montou uma assessoria.

Vanzolini - Isso é que não entendo. Tenho uma aluna, Marília Kerr, cuja irmã é uma das grandes da Administração, Helena Kerr do Amaral, presidente da Escola de Adiministração Pública. Casada com o Glauco, um cara de uns 200 quilos. Entendo que esses, Osmarina e Gil (Gilberto), sejam ministros de aparência, mas que tenham quadros que fizessem o serviço. Mas não! Gilberto Gil faz uma besteira atrás da outra. Osmarina não entende nada. Um bom Ministro que o governo tem é o Cristóvam Buarque, da Educação, está em escanteio. Tiraram as universidades federais do Ministério da Educação e transferiram para o Ministério da Ciência e da Tecnologia, prá esse imbecil, que é um cara do Itamaraty, o ministro Roberto Amaral, que nunca viu Ciência e Tecnologia na vida. O Cristóvam é ó-ti-mo, foi um belo reitor da UnB, um belo governador do Distrito Federal.

Áurea - O senhor falou em Cultura, em Educação, o senhor aponta algumas direções. Em relação a Cultura, o que poderia se estar fazendo, na sua opinião?

Vanzolini - Acho que... Como se chama esse menino do Fernando Henrique, que é da USP? O (Francisco) Weffort. Tem de publicar livros, fazer congressos e fazer convênios. O Ministério da Cultura é isso, tem de ser um Ministério de infra-estrutura. Não é Cuba, não é botar atleta no pódio. O Weffort foi bom, viu. O Instituto do Livro publicou um monte de coisa boa, teve congressos internacionais bons.

Toledo - Na verdade, há uma pequena diferença entre artista e o administrador. Um grande artista Não é necessariamente um grande administrador.

Vanzolini - Mas quem disse para você que o Gil é um bom artista, de onde você tirou essa idéia? (risos) O primeiro programa de Gil na TV- sabe quem fez?

Toledo - O senhor?

Vanzolini - Fui eu.

Áurea - Na Record?

Vanzolini - Não, na Difusora. Tinha um amigo, que era um médico comunista muito conhecido, que fez o Sítio do Pica-pau Amarelo, casado com Tatiana Belink (escritora), Julio Gouvêa, chegou para mim e disse: "Estou com o filho de um colega nosso da Bahia (o pai de Gil é médico), muito recomendado e arranjei um horário na TV para ele, só que não sei produzir. Você produz para mim?" Nesse tempo eu produzia a Aracy de Almeida e disse: "Tá certo. Eu faço." Me lembro que nos reunimos numa escola na Avenida Brasil (São Paulo) chamada Pueri Domus, foi lá que nós ensaiamos o primeiro programa de Gilberto Gil na TV. E foi o Julio Gouvêa que apresentou, eu escrevi, quer dizer, programa de cantor você só tem que dar uma deixa, é bobagem, é que o Julio tinha medo, na época. Aliás o pai do Gilberto Gil é um dos caras mais simpáticos que conheço. E muito crítico do Gil.

Áurea - Qual foi sua impressão desse primeiro trabalho dele?

Vanzolini - Achei que era um marqueteirinho, um espoleta.

Áurea - Ele só apresentou músicas próprias?

Vanzolini - Nesse aí? Sim, só coisas dele. Era para apresentar ele como um personagem musical.

Toledo - Como foi essa experiência de produção de TV e Rádio?

Vanzolini - Foi muito bom porque precisava de dinheiro. Nunca trabalhei nisso porque quisesse. É que estava devendo dinheiro, meu pai morreu e me deixou muito mal de vida. Quando fundaram a Record (1953) o Raul Duarte, que era muito meu amigo, que me conhecia por causa desse primo, me convidou para ir porque todo mundo tinha medo da Aracy de Almeida. Então, eu fui para produzir Aracy Almeida. Não tinha nada que Ter medo, ela era uma pessoa doce, humilde, boa gente, só que era muito otária, muito estressada, muito deprimida, por isso que saía com esses rompantes todos de falar palavrão. O que ela me fez passar de vergonha não está no gibi. Mas era uma pessoa até humilde e boa.

Áurea - O senhor conversava sobre suas experiências de música, suas e dela?

Vanzolini - Que nada! Aracy não sabia as letras de Noel Rosa. O grande problema de Aracy era ela poder ler a música que ela estava cantando, porque ela não sabia nenhuma música de cor. A primeira coisa que fiz foi um cenário com bar. Então eu pregava um papel de embrulho na parede escrito em carvão, mas tinha muito problema com a câmera. Então, eu fiz que ela era dona de um bar e a máquina registradora passava o rolo de papel de embrulho com as letras (risos ). A garçonete da Aracy nesse programa é atriz até hoje, a Nair Belo.

Áurea - Como era o programa?

Vanzolini - Era um bar, e a dona do bar cantava, entrava o violão.

Toledo - Lembra do nome do programa?

Vanzolini - Não tenho a menor idéia.

Áurea - Era só dela, ou trazia convidados?

Vanzolini - Só dela, mas ele era uma pessoa tão acanhada e complexada - então ela agredia. Um dia nós fomos na casa do Paula Machado, um banqueiro. Chegou um grã-fino e disse: "Aracy de Almeida, seu nome não me é estranho". Ela disse: "O seu também não; vi sua cara no jornal, foi o senhor que estuprou uma menina de 9 anos, por que o senhor não se mete com uma mulher do meu tamanho?" Isso no meio da festa.

Áurea - Ela se apresentava acompanhada por uma orquestra ou um conjunto?

Vanzolini - Só violão e ritmo.

Áurea - Quem era o violonista? O senhor lembra?

Vanzolini - O ponto forte dessa caixa de Cds meus é esse.

Toledo - Ítalo Perón?

Vanzolini - Não só o Ítalo, mas o Isaías Almeida (bandolinista), o irmão dele, Israel de Almeida (violonista), o Pratinha, o Zé Barbeiro. O fino do samba ,nunca se reuniu um grupo de músicos tão talentosos como nesse meu disco (Acerto de Contas).

Toledo - Realmente, esse disco tem cara de samba paulista.

Vanzolini - Pois é, é a idéia... Quem pagou esse disco foi a Petrobrás. E a gravadora é de uma banqueira. Quando ela cobriu o investimento dela ela se desinteressou. Comprar esse disco é a coisa mais difícil. Os músicos têm de mandar buscar no Rio. É uma boa pessoa, o nome dela é Katty Almeida Braga, a gravadora é a Biscoito Fino e a diretora artística dela é ótima, a Olívia Hime. É muito fácil lidar com eles. Mas comercialmente são os mais incompetentes do mundo. Porque, agora a Petrobrás pagou e ela não teve mais despesas, para a banqueira acabou. Acabou naquela hora.

Áurea - O ponto mais forte do disco são os músicos que o acompanham.

Vanzolini - Sim, eles sabem; é o som paulista. Os cantores também não podiam ser melhores.

Toledo - Uma seleção!

Vanzolini - E quando eu convidei o Paulinho Nogueira para cantar: "Xará, você vem cantar no meu disco", ele disse: "Imponho uma condição, quero o Isaías". Eu disse: Já está".

Áurea - O senhor falou em samba paulista, há o samba carioca, existe uma forma de cantar o samba em São Paulo?

Vanzolini - Não acho que um seja melhor que o outro. No meu disco cantam dois grandes amigos meus cariocas, Martinho da Vila e Paulinho da Viola.

Toledo - A Cristina e o Chico?

Vanzolini - O Chico é paulista, aprendeu samba aqui em São Paulo. Quando foi para o Rio já era homem feito. A Cristina também, mas se vocês quiserem Ter uma idéia mesmo, veja o samba do Adoniran cantado pelos Demônios da Garoa. Os Demônios, hoje, são uma porcaria, mas o Artur Bernardo, um dos fundadores do grupo, era um bruta de um músico, criou esse som. Se você ouvir na China, vai saber que é samba paulista.

Toledo - Uma marca bem forte.

Vanzolini - Aliás, ele era um gênio.

Toledo - Um aspecto curioso nos seus sambas é quase uma ausência de refrão. O senhor não é um homem que usa muito refrões.

Vanzolini - Refrão não é de samba, refrão é de marchinha.

Toledo - Adorei a definição. Seus sambas vão crescendo, crescendo até o desfecho. Acho isso muito bom.

Vanzolini - O bom nisso é fazer. Eu mesmo não gosto de ouvir minhas músicas.

Toledo - Nem Capoeira do Arnaldo?

Vanzolini - Principalmente essa. Aliás, por falar nisso, está saindo esses dias, agora, um disco maravilhoso do Bando de Macambira.

Toledo - O senhor sabe qual é a gravadora?

Vanzolini - Foi o Ítalo Perón que fez, não sei se foi pela Trama. Está para sair.

Toledo - Essa gravação deles (de Capoeira do Arnaldo em Acerto de Contas)é antológica.

Vanzolini - Um dia abri a porta do bar de noite e tava lá o Bando de Macambira, faz uns 30 anos. Eles são de um lugar chamado Batateira. Conhece o Ceará? Atrás da cidade do Crato tem uma serrinha e tem um buraco que é Batateira, de onde esse pessoal é. São irmãos, primos e sobrinhos e filhos.

Toledo - Percebi que tem o mesmo sobrenome.

Vanzolini - Lima. Agora, o gênio é o João Lima, que toca bandolim.

Toledo - Como esse pessoal veio Ter contato e querer gravar seu trabalho?

Vanzolini - Vieram trabalhar na noite, aqui em São Paulo, já faz 30 anos, sempre trabalharam na noite. Uma noite abri a porta do dancing e quem estava lá? A mineirinha, Virginia Rosa. Descobri Virginia Rosa cantando num dancing das 9 ás 4 h.

Áurea - Uma cantora maravilhosa.

Vanzolini - Puta cantora! Fui eu que lancei. Lancei o Jorge Ben. Lancei o Martinho, que não chamava da Vila, era o sargento Martinho José Ferreira. Foi lançado no Jogral. Jorge Ben, também.

Áurea - O senhor fazia a programação, produzia no Jogral?

Vanzolini - Não, o Jogral não tinha produção, era música na mesa. O selo do Jogral é que não tinha nem microfone, era música na mesa. O cantor sentava e perguntava: "O que é que você quer ouvir?"

Áurea - E juntava um time bom da época. O Luiz Carlos Paraná comandava o bar sozinho?

Vanzolini - Santo Deus, quando faltava o garçom ele punha o paletozinho branco e servia.

Toledo - O Luiz Carlos Paraná era violonista e compositor também.

Vanzolini - E cantor, grande cantor
.
Toledo - E vocês chegaram a fazer alguma música juntos?

Vanzolini - Não , tenho de parceiro o Gudin, o Elton Medeiros, um ótimo parceiro...

Toledo - Dançando na Chuva...

Vanzolini - É. Também fui parceiro de Paulinho Nogueira.

Toledo - Toquinho.

Vanzolini - Toquinho, esse eu prefiro não lembrar.

Toledo - E a pesquisa do Xandó. E o Waldir Azevedo.

Vanzolini - É. Foi uns 20 anos entre aprender a música (Pedacinhos do Céu, de Waldir Azevedo com letra de Vanzolini) e ela ser gravada. Escrever a letra... eu trabalhava na noite.

Áurea - O senhor sempre freqüentou a noite?

Vanzolini - Enquanto tive saúde sim, agora não dá mais.

Toledo - Existe uma história na Música Popular Brasileira de que o senhor encerrava o expediente aqui ( no Museu), caía na noite, mas nunca havia se atrasado.

Vanzolini - Sete e meia da manhã estava aqui.

Toledo - Tenho que aprender essa fórmula.

Vanzolini - O que gosto de fazer é isso aqui. Estou aposentado desde 1993, meu filho. O que você acha que eu venho fazer aqui? É porque gosto.

Toledo - E por quanto tempo o senhor dirigiu esse museu?

Vanzolini - Dirigi 30 anos. Quando entrei aqui era muito jovem e os outros eram muito mais velhos, de modo que, por idade, caiu na minha mão, além do que o governador era meu amigo.

Toledo - Existe um a tradição de estudo de Zoologia no Brasil?

Vanzolini - Existe e foi muito boa. A hora no momento é muito ruim, mas houve épocas muito boas.

Toledo - Muita gente de fora, com grifo, muitos estrangeiros vindo, que se dedicam a esses estudos.

Vanzolini - Não, muito poucos, mas são os brasileiros.

Toledo - Mas o que aparecem na mídia...

Vanzolini - Na mídia? Qual zoólogo que aparece na mídia?

Áurea - Voltando à música, o senhor disse que prefere não lembrar do Toquinho.

Vanzolini - Prefiro esquecer.

Áurea - O senhor não quer falar?

Vanzolini - Existe um caso muito ruim, mas não gosto de lembrar.

Toledo - E essa geração nova de São Paulo? O Quinteto Branco e Preto, por exemplo.

Vanzolini - esses são do primeiro time. Tem muita gente nova boa, outro dia fizemos um show no Rio com um grupo chamado Grupo Galo Preto, que tem um bandolinista de primeira.
Toledo - Eles gravaram com Nelson Sargento e com o Elton.

Vanzolini - Nelson Sargento quem trouxe para São Paulo fui eu na (gravadora) Marcus Pereira. Ele e Carlos Cachaça.. Marcus Pereira era muito meu amigo. Fui eu quem gravou essa ponte entre Rio e São Paulo.

Áurea - O senhor tinha uma forte relação com a velha guarda. O senhor fazendo o que gosta prioritariamente, trabalhando aqui no museu, teve muito contato com personagens, com a Velha Guarda, com toda a história da música brasileira.

Vanzolini - Tive, tive. Vamos ver: Donga., Pixinguinha, eu tive esse contato com ele, era proibido chamar de Pixinguinha, era Sêo Alfredo, que Pixinguinha queria dizer "cabelo ruim". Quem ficou meu amigo até morrer foi o Jacob do Bandolim. Aliás tem uma piada: uma velha chega no auditório pedindo para tocar Doce de Leite de Jacob do Tamborim (risos). E os músicos consideram Doce de Coco (o título correto) a melhor música brasileira jamais feita. Pergunte para o Isaías, um músico e tanto. No aniversário de um amigo meu, o Chico Pinheiro, demos uma tocada lá em casa, ele gosta muito de samba e foi o Isaías Almeida e o Israel, irmão dele. O filho do Ítalo Perón, menino de 12 anos tocando violão e Isaías acompanhando com todo o respeito. Pratinha, que é nosso flautista, é maravilhoso. Nesse meu disco foi a primeira vez na minha vida em que fui gravado como queria.

Toledo - O senhor acompanhou a produção?

Vanzolini - Acompanhei porque os ensaios eram todos lá em casa. Não interferi porque não entendo nada de música. Você acha que eu ia dar conselho para o Paulinho Nogueira?
Toledo - Impressionante o senhor falar que não entende nada de música!

Áurea - Voltando à Velha Guarda, como ocorreu esse contato?

Vanzolini - Fui amigo de Jacob, Pixinguinha e o Donga, toda a velha a Velha Guarda da época. O Raul contratou o Almirante para ir ao Rio recrutar toda essa gente para o programa, todos estavam aposentados. Vieram Jacob do Bandolim , Jacob do Pandeiro, não sei quem do flautim, J. Cascata, Leonel Azevedo, Pixinguinha, Donga, todos estavam aposentados. Veio todo esse pessoal do Rio, uns quinze ou vinte. E não tinha gravação nesse tempo, um programa ao vivo no Plug-In eles puseram a câmera de televisão e transmitiram.

Áurea - Foi na Record ou na Difusora?

Vanzolini - Foi na Record, no Raul Duarte. Então fiquei muito amigo do Jacob, que era um sujeito fora de série. Ele não podia encontrar uma partitura, já pegava, tocava e catalogava e tinha um baú, que graças a Deus, está no MIS (Museu da Imagem e do Som). Ele era muito meu amigo, conversávamos sobre música folclórica. Depois, por intermédio do Vinícius, conheci o pessoal do Rio. Ele era muito amigo do Sérgio Buarque também, ficamos amigos. O Paulinho da Viola é meu amigo até hoje, como o Martinho que começou no Jogral. Estes e o Jorge Ben não eram da velha guarda. O Jorge Ben cobiçava uma judiavelha que ia no Jogral. Ele ficava tocando e olhando, cobiçava a mulher. Eu dizia: "Jorge, olha só mocotó da mulher" - a mulher tinha um tornozelão assim, grande. Dizia: "O que eu quero é mocotó. O que eu quero é mocotó!" E ficou Trio Mocotó.

Áurea - Há sempre essa relação entre a música e o encanto da mulher.

Vanzolini - O encanto da mulher não precisa de música nenhuma.

Áurea - Mas e sua música?

Toledo - É curioso observar que existem poucos sambistas que não gostam de mulher. Uma boa coisa.

Vanzolini - Uma que foi uma pessoa muito curiosa, maluca completa, era a Izaurinha.

Toledo - Izaura Garcia.

Vanzolini - Bruta cantora, também. A Inezita também, ela tem essa besteira de folclore, mas ela foi uma das maiores cantoras de samba do Brasil. Fui com Inezita uma vez no morro do Salgueiro e a turma mandou buscar champanhe no armazém, quando a ouviu cantar na roda.

Áurea - O senhor freqüentou bastante o Rio, as escolas de samba...

Vanzolini - Ia muito ao Museu nacional no Rio. O pessoal lá é muito meu amigo.

Toledo - O Museu da Quinta da Boa Vista. E os outros sambistas paulistas? Germano Mathias, Geraldo Filme?

Vanzolini - Germano é mais um showman . Geraldo Filme era ótimo, era paulistano da Glória. Geraldão. Uma vez Geraldo e eu fomos juízes de um concurso de dança e ele mandou vir uma garrafa de cachaça. Começou a cuspir no chã, quando vi tinha uma poça no chão, quando vi tinha uma poça no chão (risos). Tinha um ótimo sambista que nunca fez nome, Vitor Adagostino, o Vitor Dagô. Morava na rua Borba Gato (Zona Sul de São Paulo). Trabalhava fazendo jingle, mas era um sambista de sambista de primeira. (cantando) Vou descendo a ladeira eu vou/vou mudando do meu porão. É ótimo. O Adoniran é um gênio.

Toledo - Tem a sua música, Seu Barbosa...

Vanzolini - O Luiz Carlos Paraná ia dar uma medalha para o Adoniran e me encomendou um samba mexendo com o Adoniran, imitando o estilo das músicas dele. O nome do Adoniran era Rubinato. Um cantor, o Agostinho dos Santos, chegou da Itália e disse que tinha armado a maior confusão, indo até a embaixada, porque estavam tocando Trem das Onze, do Adoniran, na Itália, como se fosse se fosse de um compositor italiano chamado Giovani Rubinato. (risos). Por isso o Paraná queria que eu pusesse Rubinato na letra.

Toledo - E a história do gato, tem alguma coisa a ver?

Vanzolini - É minha imitação do estilo do Adoniran, era muito amigo dele, tem muita coisa dele.

Áurea - Briga em cortiço...

Vanzolini - Você conhece o samba da casa do Nicola (Um samba no Bixiga), em que voavam as pizzas? No fim tem um recitativo do sargento falando (Ouvimos o Sargento Oliveira falar/num tem importância vou chamar duas ambulância/Aí ele diz assim: carma pessoal! A situação aqui está muito cínica, os mais pió vai prás crínica). Uma das coisas mais perfeitas. O Adoniran era perfeito. Veja, quando ele fala: "Inês saiu dizendo que ia comprar pavio para o lampião". Em sete volumes sobre pobreza da periferia você não a define melhor do que alguém comprando pavio para lampião em São Paulo. Não é?

Áurea - É verdade.

Vanzolini - Ele tinha um traço de caricaturista, aquele Samba Italiano é maravilhoso (Piove, Piove...).Depois de 60 anos fui descobrir que tubarão não é tubarone em italiano e sim pescene, que tubarone é italiano do Brás. Mas quando o Aoniran morreu, durante o velório, caixão aberto, estavam os Demônios da Garoa.

Áurea - O seu samba também contém a crônica, a carteira que é batida na Praça Clóvis (no samba do mesmo nome), no Centro de São Paulo.

Vanzolini - A gente faz samba para se divertir.

Toledo - Há grande sacação de Samba Erudito, em que a personagem devia ser uma chata (risos).

Vanzolini - Samba Erudito era o samba da USP. Tudo aconteceu mesmo! Fiz porque queria fazer, me apareceu o tema.

Toledo - E a letra de Pedacinho do Céu?

Vanzolini - Levei 25 anos para fazer. Letra de choro não é fácil, porque tem que ser muito exata, coincidindo com a pinicada da palheta do bandolim ou do cavaquinho. Waldir era cavaquinho. Eu tenho um ouvido muito ruim, não conseguia aprender a melodia da Segunda parte. Aliás, quando compus o primeiro verso: "Tem nos seus olhos dois favos de mel", eu sonhei que o Adoniran me dizia: "Fala flávios, Paulo, fala flávios" (risos). Eu gosto dessa letra, prá burro.

Toledo - A Segunda parte é fantástica.

Vanzolini - A exatidão que você tem que Ter na contagem da sílaba e onde cai o acento é um trabalho de ourives, é uma mão-de-obra danada. Em Pedacinho do Céu, quando foi feita, tinha uma letra que dizia: "um estranho troféu" - meu pai dizia assim: "Estranho troféu, meu filho, é o chapéu que as mulheres usam em casamento". (risos)

Toledo - Existem outros registros gravados com sua letra?

Vanzolini - Sim, Brasília tem um grupo de choro, discípulos de Waldir Azevedo, que é maravilhoso.

Toledo - O Waldir Azevedo também foi seu amigo?

Vanzolini - Nunca conheci.

Toledo - Pegou a música e colocou letra.

Vanzolini - É uma música linda, toda música dele é linda, o choro é lindo. Já começou com Ernesto Nazareth, Odeon é um choro que o pessoal toca até hoje. Agora, O Jacob era um gênio, conhece Assanhado? Pois é maravilhoso. Eu tenho que ir agora.

Toledo - Foi um imenso prazer conversar com o senhor.

Vanzolini - Tenho que comprar remédio, tive um infarto há uns dois anos atrás. Saímos juntos. (Vanzolini liga para casa, pergunta se a mulher quer que leve alguma coisa, além de remédios. Vai para a outra sala e desliga o micro).

Toledo - O Jaguar diz que o senhor é quem mais entende de cobras e lagartos no Brasil.
Vanzolini - Acho que sou o único (risos).

Toledo - Alguém tinha que entender!

Vanzolini - Um jornalista me ligou perguntando do filme sobre o Sérgio Buarque de Hollanda: "O senhor não está orgulhoso? Somente o senhor e o Antônio vão fazer os depoimentos!" Respondi: "Se não formos nós dois, vai Ter que ser uma sessão espírita, porque o resto já morreu".


Monica Salmaso canta "Cuitelinho" no programa Moisaicos - A Arte de Paulo  Vanzolini




7 comentários:

Anônimo disse...

Não deu pra ler tudo ainda, mas que história deste senhor é um barato, um trem bão demais, ah isso é!

Beijão

Luana BH

Anônimo disse...

Já fiquei horas à frente da TV vendo uma entrevista dele. O homem é um barato! Li tudinho...vale a pena, e com o detalhe de parecer ouví-lo falar, pois, tinha uma voz diferente, espirituoso, simpaticão, um mito que se foi. Espero que fiquem, não só as músicas, mas, histórias, histórias, histórias...de que se vive senão de histórias.

Você meu caro Antonio, sempre no lance....da história.

Osvaldir

Anônimo disse...

Consegui terminar de ler essa maravilha! 2004?!?!
Onde estava este arquivo? Perdido por aí. Como todas as coisas boas deste país. Ao léo, a relento e à margem da cultura. Obrigado por postar isso e obrigado aos entrevistadores, que foram excelentes!

Martha Sandroni

Anônimo disse...

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