Mais que um manifesto político, "Rigor e Misericórdia" ópera-rock de Lobão é uma intensa jornada pessoal.
Por Antonio Siqueira
Não importa se você gosta ou não do Lobão - até porque ele não está nem aí - e não importa também se você concorda com a posição política que o artista assumiu nos últimos tempos. Eu mesmo, particularmente, já bati boca com o Lobo, mas tudo terminou com gentilezas sinceras. É preciso admitir que a ópera-rock "O Rigor e a Misericórdia" é seu trabalho mais ousado.
E não é por ter 'desapontado' alguns fãs das antigas ao achincalhar sempre que pode a esquerda (e, especialmente, o PT) e levar isso para a temática das letras que este novo disco é ousado. Isso é apenas um detalhe, já que o disco não é panfletário.
Lobão é ousado porque em "O Rigor e a Misericórdia" é ele quem toca todos os instrumentos, assina como produtor, engenheiro de som, além de, obviamente, ter escrito e cantado todas as faixas. Ah, e o disco é independente: o músico fez uma campanha de financiamento coletivo para produzi-lo.
O álbum foi feito sem pressa, mas intensamente. E todo esse processo criativo, laborioso e solitário virou também um livro. Autobiográfico, o texto, a princípio, seria um anexo da nova edição da biografia "50 Anos a Mil", que o músico lançou em 2010. Mas Lobão considerou o material tão rico que os textos ganharam vida própria, num novo livro, intitulado "
Em Busca Do Rigor E Da Misericórdia - Reflexões De Um Ermitão Urbano", uma "narrativa poético-político-musical", nas palavras do próprio Lobão. E isso também é parte da ousadia de Lobão para este novo trabalho.
Voltando ao disco, musicalmente, Lobão traz uma mistura de elementos, estilos e ideias ao longo dos 50 minutos de "O Rigor e a Misericórdia". O resultado é épico: há ecos dos anos 70 e ao mesmo tempo as faixas trazem um atmosfera violentamente atual. Soa retro, mas soa moderno. Tem balada, tem blues, tem passagens progressivas.
Rótulos são ineficientes para definir a música mas eles podem ajudar a captar o instante de um movimento, como numa foto. Com esse pensamento, podemos dizer que "O Rigor e a Misericórdia" é poderoso, encorpado e transcende o rock sem abrir mão dele. E isso já fica claro na abertura do disco, "Overture", uma faixa instrumental de pouco menos de dois minutos que serve de prelúdio ao apocalipse - no sentido de revelação - que Lobão pretende fazer.
Pode parecer pretensioso - e talvez seja mesmo - mas é também muito sincero. Seja nos momentos em que há peso, riffs e distorção quanto naqueles em que dedilhados e teclados se sobressaem, a música de Lobão transborda tudo aquilo em que ele acredita: é aí que está a revelação. Não de forma ingênua como um garoto de 15 anos faria com sua banda punk gritando contra o 'sistema', mas do alto da experiência de um senhor de 57.
Quanto à temática, parte do tempo do repertório é dedicado a críticas contundentes ao atual governo. O que, aliás, é o que o rock sempre fez, certo? Em letras como "
A Marcha dos Infames",
"Os Vulneráveis" e "
A Posse dos Impostores", Lobão mostra a distopia política do nosso presente, dando nome aos bois e vomitando todo seu descontentamento - e permitindo que uma grande parte dos brasileiros se identifique com seu discurso.
Mas nem só de política "
O Rigor e a Misericórdia" vive. "
Assim Sangra a Mata" tem cunho social e fala sobre o garimpo na Amazônia soando como uma canção de ninar de terror. "
Ação Fantasmagórica à Distância" é sobre a morte de seu pai, enquanto "
O que es la Soledad en Sermos Nosotros" filosofa (em espanhol) sobre a solidão. É interessante ver também como Lobão pensou em detalhes na hora da composição. Há muitas camadas para desvendar no repertório. Por exemplo: a afetação na voz de Lobão na pesada "
Alguma Coisa Qualquer" dá ênfase à natureza contundente da canção.
Mais que um manifesto político, "O Rigor e a Misericórdia" é uma busca pessoal por algo que Lobão identifica como rigor e misericórdia. Como pessoa, Lobão pode emitir suas opiniões livremente. Já como artista, ele tem nisso um dever. O artista que não expressa o que sente em sua arte não está fazendo arte. E arte não existe para concordarmos com ela.
Programa:
01. Overture
02. Os Vulneráveis
03. A Marcha dos Infames
04. Assim Sangra A Mata
05. O que es la Soledad en Sermos Nosotros
06. Alguma Coisa Qualquer
07. Dilacerar
08. Os Últimos Farrapos da Liberdade
09. A Posse dos Impostores
10. Ação Fantasmagórica à Distância
11. Profunda e Deslumbrante Como o Sol
12. Uma Ilha na Lua
13. A Esperança é A Praia de um Outro Mar
14. O Rigor e a Misericórdia
Lobão: Os Vulneráveis