domingo, 23 de fevereiro de 2025

Josiel Conrad: O Sopro da Alma Carioca

📌 Frase dele que define tudo: 

"Meu trombone fala o que o morro não cala. E o samba, ah, o samba é minha oração sem igreja."



  
Josiel Konrad



Por Antonio Siqueira


Nas ruas estreitas de Madureira, onde o asfalto guarda o eco dos tambores, havia um menino que carregava um trombone maior que ele. Josiel Conrad, ainda pequeno, não sabia que aquelas notas desafinadas de latão seriam, um dia, a voz de um Rio que samba, chora e se reinventa.  

O trombonista cresceu entre becos e ladeiras, onde o sol da tarde dourava os muros das escolas de samba e o cheiro de feijoada da Tia Surica se misturava ao suor dos ensaios. Aos poucos, o instrumento pesado virou extensão do corpo: Josiel crescia, aprendia a dialogar com o mundo através das notas graves, daquela voz rouca que só o metal sabe ter. Nas noites da Lapa, entre bares que não fecham e poetas que não calam, ele descobre que o trombone poderia sim; chorar como um bluesman, gingar como um passista ou rugir como o mar de Copacabana.  

Mas Josiel não é só sopro. Há nele um compositor que escreve canções como quem escreve cartas de amor à cidade. Suas letras falam de amores perdidos no trem da Central, de rodas de samba que viram família, da fé em São Jorge e de protesto contra a segregação racial, contra a opressão ao povo preto. Na voz, ele carrega a raiz do subúrbio e a elegância do asfalto — um crooner de smoking desbotado, capaz de fazer o público dançar e, no refrão seguinte, emudecer de emoção.  


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Dizem que, em seus shows, o tempo para. O trombone desenha melodias que subiam como fumaça de barracão, enquanto sua voz, suave e áspera, conta histórias de um Rio que resiste. Nas músicas de Josiel Conrad, ouve-se os guizos do Olodum, o lamento do choro, o fogo do jazz — tudo temperado com a ginga de quem sabe que a vida é um improviso.  

Hoje, quando sobe ao palco, ele carrega consigo o peso e a leveza de uma cidade inteira. Josiel não toca: celebra. Cada nota é um encontro entre a tradição e a ousadia, entre a dor e a esperança. E o público, seja no Theatro Municipal ou no coreto da praça, entende: aquele homem de trombone e versos é um retrato falado do Rio. Um artista que, como a sua cidade, sabe transformar feridas em canção — e seguir dançando, mesmo quando o chão treme.  


🎥 Dica de conteúdo:

Josiel Konrad - Boca Nº 0 Funk Carioca 



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Fernanda Torres: A arte de permanecer



IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP


Por Antonio Siqueira

Há algo de inquietante e, ao mesmo tempo, reconfortante em assistir a Fernanda Torres na tela. Ela não é apenas uma atriz; é uma presença. Uma daquelas figuras que carregam consigo a história do cinema brasileiro, mas que, ao invés de se ancorar no passado, segue reinventando-se, desafiando o tempo e as expectativas. Em "Ainda Estou Aqui", Fernanda nos oferece mais uma prova de seu talento inesgotável.

O filme, que poderia ser resumido em poucas linhas de sinopse, ganha complexidade e profundidade nas mãos de Fernanda que incorpora Eunice Paiva, uma mulher que, após uma perda devastadora, precisa reconstruir sua vida, a vida de seus filhos e de toda sua família. A trama, que poderia cair no lugar-comum do melodrama, é elevada pela sensibilidade da atriz, que consegue transmitir dor, esperança e resiliência sem recorrer a exageros. Cada olhar, cada pausa, cada gesto parece carregado de significado. Fernanda não atua; ela existe dentro da personagem.

E é essa existência que nos faz refletir sobre o título do filme: "Ainda Estou Aqui". A frase, aparentemente simples, ecoa como um mantra, uma afirmação de resistência. Eunice, a personagem, poderia ter sucumbido ao luto, ao desespero, ao vazio. Mas ela segue em frente, mesmo que a passos lentos, mesmo que carregando o peso da ausência. E Fernanda, com sua interpretação delicada e potente, nos lembra que a vida, por mais dura que seja, é feita de recomeços.

Mas não é apenas a personagem que nos fala sobre permanência. A própria Fernanda Torres parece dialogar com o título. Em uma indústria que muitas vezes descarta mulheres após certa idade, ela segue relevante, poderosa, indispensável. Sua carreira é um testemunho de que o talento é algo eterno sim. Desde os tempos de "Eu Sei Que Vou Te Amar" até "Ainda Estou Aqui", Fernanda construiu uma trajetória marcada pela coragem de escolher papéis desafiadores e pela capacidade de transformar cada um deles em algo memorável.

Ao final do filme, ficamos com a sensação de que Eunice, assim como Fernanda, é uma sobrevivente. Ambas nos ensinam que permanecer não é apenas uma questão de estar presente, mas de resistir, de se reinventar, de encontrar beleza mesmo nas cicatrizes. E é por isso que Fernanda Torres não é apenas uma atriz; ela é um símbolo de que a arte, assim como a vida, é feita de recomeços. E que, enquanto houver histórias para contar, ela ainda estará aqui.





Ainda Estou Aqui | Trailer Oficial |






domingo, 9 de fevereiro de 2025

O Adeus ao Cantador Vital Farias

Vital Farias deixou legado de poesia, engajamento político e amor pela cultura nordestina


Vital Farias



















Por Antonio Sqiueira

Vital Farias partiu para outras terras, foi levar sua cantiga para além desse plano conturbado que vivenciamos. Aos 82 anos, vítima de um infarto do miocárdio, o cantor, compositor e violonista era daquele tipo de artista cujas obras eram muito mais conhecidas do que ele próprio. É muito comum você encontrar gente que nunca ouviu falar dele, mas que sai cantando imediatamente a letra inteira quando alguém assopra: “não se admire se um dia, um beija-flor invadir...” Além de “Ai Que Saudade D'Ocê”, o cantador e violeiro é autor de vários outros sucessos que ficaram conhecidos principalmente nas vozes de outros cantores como “Veja”, “Caso você case”, “Canção em dois tempos”, da minha preferida e amada "Sete Cantigas Para Voar" que toco no violão como um desabafo em meus momentos solitários. 

Nascido no sítio Pedra d'Água, no município de Taperoá PB mudou-se para João Pessoa aos 18 anos, onde serviu no 15º Regimento de Infantaria e estudou no Lyceu Paraibano. Foi na capital paraibana que ele começou a tocar violão de forma autodidata, tornando-se, posteriormente, professor de violão e teoria musical no Conservatório de Música.

Em 1975, partiu para o Rio de Janeiro, onde mergulhou no cenário artístico, participando de peças como 'Gota d’Água', de Chico Buarque, e concluindo sua formação na Faculdade de Música em 1981. Vital participou de diversos festivais de música, onde suas canções ecoaram como hinos de resistência e poesia. Sua música 'Toada do Ausente' foi premiada no Festival MPB Shell, em 1980, e se tornou um marco em sua carreira. Ele também colaborou com grandes nomes da música brasileira, como Elba Ramalho, Zé Ramalho e Fagner, além de ter sido homenageado em eventos culturais por sua contribuição à música nordestina.

Sua primeira composição gravada foi 'Ê mãe', em parceria com Livardo Alves, interpretada por Ari Toledo. Em 1978, lançou seu álbum de estreia, 'Vital Farias', seguido por 'Taperoá' (1980), que consolidou seu nome como um dos grandes representantes da música nordestina. Ao longo da carreira, lançou discos como “Cantoria” (1984), 'Vital Farias e Convidados' (1995) e 'Vital Farias ao Vivo'(2002), sempre destacando a riqueza cultural do sertão e a luta do povo nordestino.

Com quase 6 decadas de carreiras, 7 álbuns autorais e dezenas de produções teatrias, musicais e fonograficas, Vital Farias têm um classico em sua discografia: "Sagas Brasileiras" gravado pela PolyGram em 1982. Este disco reúne talvez as mais belas obras do cancioneiro popular como  "Do Meu Jeito Natural, "Forrofunfá , "Sete Cantigas Para Voar", "Ai, Que Saudade D'Ocê", "Saga de Severinin", "Saga da Amazônia", "Trem da Consciência", "Belo Belo (instrumental)", "Apesar da Solidão", "Saga do Boi de Mamão". Uma obra-prima para todo o sempre.

LP Sagas Brasileiras


















Desde o início de jornada Vital Farias era ativista e em sua música haviam fortíssimas inclinações à resistência contra as injustiças sociais e sobretudo à destruição do meio ambiente. Sempre foi conhecido por seu engajamento político. Durante a ditadura militar, suas canções carregavam críticas sociais e políticas, refletindo sua visão de mundo e seu compromisso com as causas populares. Ele foi filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e apoiou diversas causas progressistas ao longo da vida se candidatando duas vezes pelo PSOL e uma pelo PCdoB. No entanto, nos últimos anos, especulou-se que ele teria se aproximado de ideias bolsonaristas, o que gerou controvérsias entre seus fãs e admiradores. Vital nunca confirmou publicamente essa mudança de posicionamento, mas suas declarações em redes sociais e entrevistas levantaram debates sobre suas convicções políticas. 

O melhor mesmo de sua vida, no entanto, fica por conta de sua obra, que sempre nos legou um tanto de encanto, talento e alegria. A poesia e música de Vital é de beleza eterna e inequívoca.


Sete Cantigas Para Voar




sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O Tempo De Viver o Que Nos Cabe

 

Por Antonio Siqueira



Photographed By Antonio Siqueira














A pandemia passou, mas alterou percepção geral do tempo, passamos a esquecer o clichê, “daqui até a eternidade” e começamos a viver um dia após o outro, contando as horas inclusive. Mera desilusão, para muitos foram dias severos demais em detrimento da perda de liberdade e da impossibilidade de aparecer socialmente com drinks, smartphones e muita empáfia depois de uma semana de labuta. Já para poucos saiu caro demais! Para aqueles que se importaram com as mais de 700 mil mortes no país, com o desespero de milhões de vidas perdidas mundo à fora e com as  próprias perdas na família.

Em um dia de inverno de 1953, Isaac Asimov folheava um velho exemplar da revista Time de 1932 quando viu em suas páginas a imagem de um cogumelo nuclear. Ficou petrificado. Fazendo as contas, ainda faltavam 13 anos para as explosões de Hiroshima e Nagasaki. Depois ele percebeu que essa imagem era, na verdade, a foto de um gêiser. Dessa confusão nasceu um romance de viagem no tempo chamado O Fim da Eternidade, em que se fala do século 150.000, no qual vivem muitas espécies, mas nenhuma humana.

Pelos caminhos que percorreram da declaração da pandemia até o presente momento com os últimos desastres climáticos, nosso relógio mental parece estar se transformando. Expressões como “pelos séculos dos séculos” ou “daqui até a eternidade” nos parecem absurdas, e são cada vez mais os que apontam que a seta do tempo é, na verdade, uma contagem regressiva. Afinal a percepção do tempo mudou desde março de 2020, mas nosso relógio mental está sempre em transformação. 

O cérebro é uma máquina do tempo. O tempo é esse estranho elemento que podemos contar em nanossegundos, em séculos ou em lembranças, mas que sempre escapa de nós. Podemos concordar que sim ou que não. Mas todo conhecimento possível não nos ajuda na hora de decifrar sua misteriosa mecânica. Talvez porque seja como pensar sobre nós mesmos. Segundo Carl Sagan, graças ao senso de tempo, o cérebro pensa sobre o passado para prever o futuro. O cérebro é, na realidade, uma máquina do tempo. Provavelmente, pensar para a frente ou para trás é uma velha obsessão. Não é por acaso que “tempo” é o substantivo mais usado no mundo, segundo o dicionário Oxford. E esta nova e estranha percepção do tempo de agora —essa sensação de que precisamos parar para pensar se não quisermos ir a toda velocidade para lugar nenhum— talvez não seja tão nova. 



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Mílton Nascimento é uma Galáxia Infinita


Milton e Mercedes Sosa/ Foto: Cafi













Por Antonio Siqueira



Foram várias as pataquadas e demonstrações de preconceitos diversos que partiram dos estadunidenses da produção e organização do Grammy Awards no tratamento dado ao Gigante nosso, Milton Nascimento. Cantor, compositor e lenda vivíssima cujo legado não para de crescer mesmo nos seus 61 anos de carreira que, em uma nação reconhecidamente segregacionista como os EUA e cada vez mais Atada, Presa, Unida, Ligada, Fixada, Ajuntada e vinculada ao protofascismo mais rasteiro, não surpreende. 

Porém, o que me enojou profundamente (creio que também a milhares mundo a fora) e traz uma certa ansia de náusea é o crime da recusa de proporcionar acessibilidade a um senhor idoso de 82 anos, com certa dificuldade de locomoção. Muito pior que não "ter um lugar à mesa para foto com as estrelas", por que Milton Nascimento, o nosso Bituca, não é uma estrela, Milton é uma GALÁXIA infinita!

Dizem que em Los Angeles e em toda a California existe uma preocupação excessiva com acessibilidade, mas parece que não se aplica a todos, não é verdade? Los Angeles, San Diego, San Francisco, Santa Bárbara, Anaheim, Santa Mônica, Monterey, Las Vegas, Palm Springs, Oakland, Huntington Beach, Malibu e Beverly Hills contam com leis estaduais que aqui chamaríamos "Para Inglês Ver", entretanto a ascessibilidade e o humanismo são seletivos ao que tudo indica. Grande parte dos estabelecimentos das cidades californianas contam com acessibilidade para todos em diversos sentidos e necessidades especiais e a realidade é que os 'estadusunido' do Trump não possui proteção específica para deficientes, eles protegem quem eles querem.

O Ministério da Cultura (MinC) publicou ontem, terça-feira (4) uma nota manifestando “repúdio” à decisão do cerimonial da premiação do Grammy 2025 de posicionar o cantor e compositor Milton Nascimento “em um local incompatível com sua trajetória, prestígio internacional e necessidades físicas.” Para o ministério, a atitude “demonstra falta de sensibilidade e respeito a um dos maiores nomes da música brasileira". Correto. 

De todos os concorrentes a todos os prêmios, sem exceções, ninguém, absolutamente ninguém tem uma obra tão grandiosa quanto a de MILTON NASCIMENTO! Nem se quisessem.


Milton e Esperanza














Antes do Minc, Milton já havia se pronunciado a respeito do episódio em suas contas nas redes sociais. Ele esclareceu que não foi “barrado”, mas que optou por se ausentar do evento quando constatou, um dia antes, que o Grammy havia indicado “um lugar na arquibancada” e não “nas mesas - entre os artistas principais ali presentes” e ao lado da cantora e baixista Esperanza Spalding, com quem divide o disco “Milton + esperanza”, lançado em agosto do ano passado e indicado à premiação. Bituca ainda agradeceu o apoio, carinho e preocupação das pessoas que manifestaram indignação com a decisão da cerimônia do Grammy, ocorrida no domingo (2), em Los Angeles (EUA).

Esperanza Spalding publicou imagem sua sentada nas mesas principais da premiação com cartaz com foto de Milton afirmando que ele “deveria estar sentado ali” e que a não destinação do lugar “não pareceu certa.”

O disco de Esperanza e Milton concorria a melhor álbum de jazz vocal. O prêmio, no entanto, foi concedido a cantora e compositora estadunidense Samara Joy McLendon, pelo disco “A joyful holiday”. 


O disco "Milton + Esperanza" foi gravado no estilo Tiny Desk, ao vivo, muito bem produzido e com uma carga instrumental impressionante. 

Mílton Nascimento tem 82 anos de idade, lançou 34 álbuns e recebeu diversas premiações nacionais e estrangeiras, incluindo cinco prêmios Grammy.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Ainda Estamos Aqui Esperando Pela Justiça Final

Por Antonio Siqueira 



8/1: A Récua Golpista


O conjunto de invasões e depredações nos prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília, na tarde de 8 janeiro de 2023, um domingo, chocou pela violência protagonizada por manifestantes bolsonaristas, mas não surpreendeu a todos os personagens que, por razões de ofício, acompanham o cotidiano institucional da capital federal, como articulistas, jornalistas e políticos. 

O 8 de janeiro tornou-se uma data na qual as pessoas costumam lembrar onde estava, e o que estavam fazendo quando receberam a notícia de impacto, como aconteceu nas transmissões do primeiro pouso do homem na lua (1969), do acidente fatal de Ayrton Senna (1994) ou do choque dos aviões contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York e tem sim, a assinatura de Jair Bolsonaro. Nestes 2 anos, os indiciamentos avançam, oficiais de alta patente presos, mais 300 civis golpistas condenados e tudo que se viu foi semeado durante anos por Jair Bolsonaro quando ocupava a Presidência da República e atentava contra a democracia. Jair Bolsonaro está livre, não tão leve e solto, clamando, covarde que é, por anistia. Um canalha que precisa ser marcado e enjaulado. Golpistas assassinos quando anistiados voltam ainda mais motivados e cruéis, a história por si só narra e retrata isto.

Todos com um mínimo de acuidade de sentidos, sabíamos que eles não aceitariam pacificamente o resultado das eleições de 30 de outubro de 2022. Ao menos para mim não foi surpresa. Estarrecedor foi a inépcia das força de segurança pública, tanto do DF quanto da Polícia Federal. Negligência coordenada e organizada para permitir que a orda de golpistas acéfalos acessassem as sedes dos Três Poderes para destruírem tudo que viam pela frente num frenesi de barbárie.

Inclusive, a possibilidade de haver um novo golpe de Estado no Brasil era tão aventada que os roteiristas da produtora Porta dos Fundos criaram dois esquetes humorísticos simulando a mobilização de militares para fazer uma nova intervenção golpista.

Vamos refletir, meditar acerca do 8/1 e sobretudo, promover atos pela manutenção da democracia, a resistência forte contra a extrema-direita e o esvaziamento das ideologias abjetas. O Globo de Ouro, da grandiosa atriz Fernanda Torres veio num momento felicíssimo para este debate com o coletivo.

'Ainda Estou Aqui' retrata essa tragédia que é a Ditadura, de dentro para fora.


SEM ANISTIA PARA GOLPISTAS!


DITADURA NUNCA MAIS! ✊🏼