segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Antonico

Por Antonio Siqueira


O cantor e compositor Ismael Silva (1905-1978), nascido em Niterói (RJ), para fazer a letra de “Antonico”, inspirou-se em uma carta de Pixinguinha para Mozart de Araújo, na qual o maestro pedia ao amigo um emprego para o sambista em dificuldade. O samba “Antonico” foi gravado por Alcides Gerardi, em 1950, pela Odeon.



Ismael era um retrato da elegância em forma de sambista


























ANTONICO
Ismael Silva

Ô Antonico
vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim

Até muamba já fizeram pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê-lo bem feliz, se Deus quiser
E agradeço pelo que você fizer


Ismael cantando em 1973




segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A Origem do “Complexo de Vira-Lata”

Por Antonio Siqueira



Colagem:@arte_vital


















Nelson Rodrigues
todos os domingos ia ao estádio para ver os anjos e os demônios de sua devoção. Ele sempre pregou que o brasileiro precisa acabar com o complexo de vira-lata. Sob a visão de Nelson, nossa vitória sobre a Alemanha na Olimpíada teria sido celestial, porque ele elogiava muito qualquer  vitória apertada e sofrida. Quando o Brasil ganhou de 1X0 o País de Gales, em Gotemburgo, na Suécia, rumo à primeira Copa, o genial cronista escreveu: “O povo queria que enviássemos uns seis ou sete. Eis a nossa tragédia – a pura e simples vitória não basta. Mas eu vos digo, aqui, foi a maior vitória brasileira

Naquela época, Nelson Rodrigues criou a história sobre o complexo de vira-latas, que perdura até hoje:

Temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.

Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo.

Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos. (…)

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.”


(Nelson Rodrigues, em “À sombra das chuteiras imortais”, pág. 55).

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Rafaela Silva jamais será uma campeã improvável


Por Antonio Siqueira




Mérito Absoluto















No Brasil, durante décadas, a participação de negros em atividades esportivas foi socialmente condicionada às modalidades onde a explosão, a velocidade e a força bruta eram mais exigidas. Desse modo, tivemos negros brasileiros com destaque nos esportes coletivos, no atletismo (com toda uma geração de brilhantes saltadores, de Adhemar Ferreira da Silva a João do Pulo, passando por Nelson Prudêncio) e no boxe, nas luvas de Servílio de Oliveira, bronze em Cidade do México 1968.

Curiosamente, mas não por acaso, as modalidades consagradas à participação de negros são aquelas que exigem menor estrutura para treinos e competições, bem como as que contam com técnicas de mais fácil aprendizagem, dada a sua notoriedade. Esportes sofisticados, de aparato tecnológico caro e técnicas repletas de especificidades eram restritos a camadas privilegiadas, cujos representantes eram costumeiramente mandados treinar no exterior.

O ouro de Rafaela Silva no judô, o primeiro de uma mulher negra em um esporte individual, é icônico: representa o fenômeno da mobilidade social que o Brasil presencia há mais de uma década. E não se trata apenas de glorificar o papel do Estado brasileiro na formação da atleta e cidadã, muito embora tal apoio seja fundamental, pois Rafaela é militar da Marinha do Brasil, onde recebe o acompanhamento profissional e partilha a estrutura necessária a seu progresso esportivo.

Além de um sintoma de política pública bem executada, a filha da Cidade de Deus é também fruto do amadurecimento de nossa sociedade civil. Cria de um projeto social, o Instituto Reação, do ex-judoca Flavio Canto, Rafaela é a comprovação viva do papel emancipador do esporte quando democratizado a grupos historicamente marginalizados de nossa sociedade, não apenas com o oferecimento das modalidades que sempre foram oferecidas, mas também com novas atividades.

É preciso peneirar talentos que contemplem todas as modalidades olímpicas, do futebol masculino ao tiro com arco, para tornar o Brasil a potência esportiva que ainda não é.

 E muito além do aprimoramento da atuação do Estado brasileiro e das formas de organização de nossa sociedade, o sucesso de Rafaela é também produto de uma precisa intervenção familiar, quando seu pai, Luiz Carlos, enxergou como remédio para a filha brigona, ainda uma criança, o disciplinamento de seus impulsos a partir da prática esportiva. Seu sucesso é prova da relevância de uma sólida base familiar.

A atitude certeira do pai e o amparo em outras instâncias contribuíram para produzir uma campeã aparentemente improvável pela trajetória histórica do negro brasileiro nos esportes olímpicos, quase sempre relegada a um pequeno punhado de modalidades, mas icônica do quanto é possível gerar desenvolvimento social a partir da democratização das práticas esportivas. Gerações podem ser salvas com um pouco de boa vontade e decência nas políticas públicas. De  resto, a vontade de vencer e o amor de quem cria, cumprirá seu papel.