quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O gênio indomável de Sérgio Ricardo



O cineasta, artista plástico, instrumentista, cantor e compositor paulista João Lutfi, que adotou o pseudônimo de Sérgio Ricardo, afirma que a letra de “Calabouço” foi inspirada em Edson Luis, estudante assassinado por militares no Restaurante Calabouço, em 1968, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar que vigorava no Brasil. A música foi gravada no LP Sérgio Ricardo, em 1973, pela Continental.

Sergio Ricardo
















CALABOUÇO

Sérgio Ricardo

Olho aberto ouvido atento
E a cabeça no lugar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Do canto da boca escorre
Metade do meu cantar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Eis o lixo do meu canto
Que é permitido escutar
Cala a boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Cerradas portas do mundo
Cala a boca moço
E decepada a canção
Cala a boca moço
Metade com sete chaves
Cala a boca moço
Nas grades do meu porão
Cala a boca moço
A outra se gangrenando
Cala a boca moço
Na chaga do meu refrão
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Mulata mula mulambo
Milícia morte e mourão
Cala a boca moço, cala a boca moço
Onde amarro a meia espera
Cercada de assombração
Cala a boca moço, cala a boca moço
Seu meio corpo apoiado
Na muleta da canção
Cala a boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Meia dor, meia alegria
Cala a boca moço
Nem rosa nem flor, botão
Cala a boca moço
Meio pavor, meia euforia
Cala a boca moço
Meia cama, meio caixão
Cala a boca moço
Da cana caiana eu canto
Cala a boca moço
Só o bagaço da canção
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

As paredes de um inseto
Me vestem como a um cabide
Cala a boca moço, cala a boca moço
E na lama de seu corpo
Vou por onde ele decide
Cala a boca moço, cala a boca moço
Metade se esverdeando
No limbo do meu revide
Cala o boca moço. Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia

Quem canta traz um motivo
Cala a boca moço
Que se explica no cantar
Cala a boca moço
Meu canto é filho de Aquiles
Cala a boca moço
Também tem seu calcanhar
Cala a boca moço
Por isso o verso é a bílis
Cala a boca moço
Do que eu queria explicar
Cala a boca moço
Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um brasileiro de alma vazia.




Sergio Ricardo - "Calabouço"
 



segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Fator Deus


Por José Saramago

O Deus Abraâmico 



















Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mais limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua.

Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de
alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax
espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalm, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana.

Ao menos em sinal de respeito pela vida, devíamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca,
inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes
para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um Deus, mas o “fator Deus” o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, e não a outra…) a bênção divina. E foi no “fator Deus” em que o Deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um Deus andou a semear ventos e que outro Deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres Deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual fora religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras
provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “fator Deus”. Nãofaltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.



*José de Sousa Saramago foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998.

★16 de novembro de 1922
 ✝
  18 de junho de 2010

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Porquê?


Nós somos uma triste crônica construída por amigos e inimigos



O caminho lógico




















Olhar o mundo e não encontrar nada. Como gritar para ao espaço e não ser ouvido, tampouco correspondido. O absoluto vácuo, solidão não existe, existe sim, o nada. A oração do rei, do rei posto, morto, desencarnado. Do rei que era justo e rude, que era sábio e  errante. O nada é o céu, mas um céu vazio... Azul. Porém vazio.

Uma vida inteira é pouco para errar, para caminhar vazio, uma vida inteira que é um universo  sem chão e, agora, sem teto.  Porém, é uma vida, Acredite. Entretanto é necessário agradecer seja lá ao que for qualquer desgraça forjada pelo que aprendemos a chamar de existência.  Somos concebidos, nascemos, vivemos sem saber ao certo para quê e para onde, mas nascemos e vivemos. Seja de uma puta louca ou de uma santa, mas estamos condenados a existir.

Dizia Jean Paul - Sartre do alto de sua genialidade existencialista: "_Existimos em Função do Futuro." Ora, antes de vivermos, a vida é coisa nenhuma. Atemporalidade? Pode ser. A imortalidade pela literatura, a filosofia como meio de ascender; Mas ascender ao quê? O cerne da escrita, da criação, da demanda desesperada de ideias. Mas vale a pena viver mergulhado em angústias e sofrimentos que só cessam (ou não) no coma eterno da morte?

Todos os escritos possuem um sentido, por que nunca se escreve para si mesmo e quem escreve detém para si o mundo. Mas quem escreve morre a cada dia e muito. A ausência. O fim! Aquele que escreve convive com isso, com perdas. Para ser um bom escritor é preciso sofrer e morrer muito a cada dia. Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana , os deuses deixam de poder seja o que for contra este ser livre. Porém esta liberdade chama-se morte e a morte assusta. Posso afirmar, entretanto, que esta só assusta a quem não flertou ou sentiu-a bem diante à face, diante da própria alma. E posso afirmar categoricamente que não é um fenômeno tão assustador, quando atravessamos os estágios mais dolorosos e deixamos de sentir a Dor. O alívio é o anuncio da passagem e é a sensação mais nirvânica que se pode ter.

A violência, seja qual for a maneira como se manifesta, é sempre uma derrota. A violência da vida em si contra mim, contra você e contra todos é a vitória de quem? E a derrota? A derrota já está gravada no DNA da maioria dos passantes e viventes neste orbe desajustado e vil. A traição, o desprezo, a espada, a bala que atravessa o peito, o escuro, o escarro...é tudo a mesma coisa! O alimento da maioria das almas que ocupam corpos nesta terra miserável é a maldade. Falo por mim. Alimento-me da maldade ou do amor que me dão na mesma intensidade; faço amor e faço mal com o mesmo prazer e êxtase. A natureza só é perfeita para os hipócritas que se mascaram e a reação é irmã siamesa da ação, seja ela qual for. O melhor é seguir a estrada e enfrentar o demônio mundo desprezando-o.

A misantropia não é insanidade, muito pelo contrário, é uma demonstração de bom senso quando se lida com bestas-feras à solta, agindo livremente, matando almas e corpos sob o julgo infame do livre arbítrio. Este plano terrestre foi moldado para espiação e purgatório geral. Se o espírito insiste em estar aqui, alguma coisa não vai bem. Tu és metade vítima, metade cúmplice, como todos os outros e tuas Mãos estarão Sujas. Lava-las é um simbolismo ultrapassado e ignóbil. Ridiculamente romano.

A Bíblia foi o livro mais sabotado na história da humanidade e suas crenças. O que deveria ser o referencial mais legítimo da espiritualidade, acabou sendo um elemento de indulgência vilipendiado e massacrado em sua essência pela igreja que insiste em representar Jesus de Nazaré. Porém, muitas passagens ali descritas demonstram que, de fato, o tão esperado Messias nasceu e cresceu entre os notáveis monges Essênios de Qunrã e tentou, em vão, ensinar física quântica há dois mil anos à uma humanidade que só foi considera-la quase dois mil anos depois; Lucas 21:17-19 lê-se e vivencia-se: "Todos odiarão vocês por causa do meu nome. Contudo, nenhum fio de cabelo da cabeça de vocês se perderá. É perseverando que vocês obterão a vida. " Algo não deu certo. E creia-me; é tarde demais!

É chegada a hora de ser abandonado e abandonar. É chegada a hora de sorver outras lições. É chegada a hora do ceticismo, da decadência de princípios...é chegada a hora de vestir-se de vergonha, principalmente na cara, na face oculta, nos confins do inferno íntimo e pisar no chão repleto de cadáveres vivos.


Au revoir