sábado, 6 de maio de 2017

Belchior tocou fundo na solidão da condição humana


É chegado o momento de uma redescoberta da música de Belchior, de suas letras e, sobretudo, do pensamento social com caráter antropológico do artista.

Nossos ídolos ainda são os mesmos e eles estão morrendo


















Por Antonio Siqueira



Não é todo dia que faço isso. Vou dar trégua à loucura e falar um pouco dos próprios sentimentos. Foi noticiado que o cantor Belchior morreu dormindo. Fiquei atordoado e insone após a notícia. Uma artéria de grosso calibre, a maior do corpo humano, teria estourado nas entranhas feito uma bomba-relógio, ceifando a vida de um “antigo compositor cearense”, um “reles cidadão latino-americano” que, pelo que constava, pelo que se propagava na mídia, era atormentado por questões existencialistas primárias, como dinheiro e desilusão, por exemplo. Não creio que Belchior estivesse quebrado. Eu suponho que o seu coração, sim, estivesse partido, espatifado, falido de amor e de fé.

Foi um apaixonado, um indignado, um resignado, um canalha, um sedutor. Mas, principalmente, tocou fundo na solidão da condição humana, antecipando em décadas o isolamento nosso de cada dia, retidos numa tela de smartphone. Estamos conectados com o mundo e chorando de solidão. Estamos na luta para ganhar dinheiro e mesmo assim compartilhando cards em redes sociais indicando que o amor é maior que qualquer emprego. Mas só compartilhamos nos intervalos da correria do trabalho, ou dos trabalhos.

Tudo são conjecturas. Não tive o prazer e a honra de conhecer Belchior, pessoalmente. No final dos anos 1990, vi um show dele em Campo Grande RJ, no Teatro de Arena Elza Osborne. É incrível quando se sente dor, tristeza, uma melancolia danada pela morte de alguém que, sequer, nos conhecia. Foi bem assim que me senti quando soube do fim silencioso de Belchior. Ele morava de favor, incógnito, na casa de um amigo em Santa Cruz do Sul.

Acho que compreendo o que Belchior sentia no seu exílio voluntário. No fundo, eu penso que ele tenha entregado os pontos. Isso é um palpite, um sentimento muito pessoal, pois, eu quase sempre sofro do mesmo ímpeto de jogar a toalha: eu acredito que ele tenha optado em se postar fora do jogo, que ele tenha se recusado, peremptoriamente, a viver a vida tal e qual a vivemos no planeta, em especial, no Brasil, um país de povo inculto, sofrido, desonesto, matreiro, religioso, hipócrita e feliz. Que mistura é essa? O que será mesmo essa tal felicidade?

Sim. Nossos ídolos ainda são os mesmos e eles estão morrendo. Isso é sintoma de que também estamos definhando sob o cajado cruel e impiedoso do tempo. Há quem afirme, esbanjando autoconfiança e empáfia, que toda espécie de idolatria é descartável, que não precisamos de ídolos para sobreviver às agruras da vida, que este subterfúgio seria um mister para os fracos. Eles devem estar certos. A razão quase sempre está certa. E é por essa e outras certezas que a poesia, a música e a arte de maneira geral vicejam como uma espécie de antídoto para tanta racionalidade. Há que se sublimar para suportar a pressão de estar jogando o jogo da vida. Para não afundar, cada qual se agarra nos destroços que consegue. Eu, por exemplo, prefiro a música.

Descanse em paz, 'Belchiô (como ele mesmo gostava de ser chamado)'. Conseguiram, finalmente, matar-te logo, por que à tarde, às 3...seu compromisso, meu grande compositor, era com a eternidade. Como dizem em terras cearenses: "Cearense que nasce burro, nasce morto." A filosofia abraçou e eternizou o nome e a música de Antonio Carlos Gomes Belchior.



"Pequeno Mapa Do Tempo"






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