quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Rafaela Silva jamais será uma campeã improvável


Por Antonio Siqueira




Mérito Absoluto















No Brasil, durante décadas, a participação de negros em atividades esportivas foi socialmente condicionada às modalidades onde a explosão, a velocidade e a força bruta eram mais exigidas. Desse modo, tivemos negros brasileiros com destaque nos esportes coletivos, no atletismo (com toda uma geração de brilhantes saltadores, de Adhemar Ferreira da Silva a João do Pulo, passando por Nelson Prudêncio) e no boxe, nas luvas de Servílio de Oliveira, bronze em Cidade do México 1968.

Curiosamente, mas não por acaso, as modalidades consagradas à participação de negros são aquelas que exigem menor estrutura para treinos e competições, bem como as que contam com técnicas de mais fácil aprendizagem, dada a sua notoriedade. Esportes sofisticados, de aparato tecnológico caro e técnicas repletas de especificidades eram restritos a camadas privilegiadas, cujos representantes eram costumeiramente mandados treinar no exterior.

O ouro de Rafaela Silva no judô, o primeiro de uma mulher negra em um esporte individual, é icônico: representa o fenômeno da mobilidade social que o Brasil presencia há mais de uma década. E não se trata apenas de glorificar o papel do Estado brasileiro na formação da atleta e cidadã, muito embora tal apoio seja fundamental, pois Rafaela é militar da Marinha do Brasil, onde recebe o acompanhamento profissional e partilha a estrutura necessária a seu progresso esportivo.

Além de um sintoma de política pública bem executada, a filha da Cidade de Deus é também fruto do amadurecimento de nossa sociedade civil. Cria de um projeto social, o Instituto Reação, do ex-judoca Flavio Canto, Rafaela é a comprovação viva do papel emancipador do esporte quando democratizado a grupos historicamente marginalizados de nossa sociedade, não apenas com o oferecimento das modalidades que sempre foram oferecidas, mas também com novas atividades.

É preciso peneirar talentos que contemplem todas as modalidades olímpicas, do futebol masculino ao tiro com arco, para tornar o Brasil a potência esportiva que ainda não é.

 E muito além do aprimoramento da atuação do Estado brasileiro e das formas de organização de nossa sociedade, o sucesso de Rafaela é também produto de uma precisa intervenção familiar, quando seu pai, Luiz Carlos, enxergou como remédio para a filha brigona, ainda uma criança, o disciplinamento de seus impulsos a partir da prática esportiva. Seu sucesso é prova da relevância de uma sólida base familiar.

A atitude certeira do pai e o amparo em outras instâncias contribuíram para produzir uma campeã aparentemente improvável pela trajetória histórica do negro brasileiro nos esportes olímpicos, quase sempre relegada a um pequeno punhado de modalidades, mas icônica do quanto é possível gerar desenvolvimento social a partir da democratização das práticas esportivas. Gerações podem ser salvas com um pouco de boa vontade e decência nas políticas públicas. De  resto, a vontade de vencer e o amor de quem cria, cumprirá seu papel.




2 comentários:

Paulo Mendes disse...

Rafaela é negra, pobre e homossexual. Outras pessoas que também fazem parte de grupos históricamente marginalizados e sofrem preconceito não recebem o tratamento adequado pelo Estado, então como glorificá-lo?
Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, sofreu racismo e homofobia, preconceitos que também possa ter sofrido nos quartéis. Torço para que sua medalha não seja apenas um marco momentâneo e seja um marco de mudança. São com outros êxitos por parte do Estado que de fato poderemos nos orgulhar de conquistas pela sociedade como um todo.
Ela serve de exemplo e de incentivo à mais políticas públicas como as que a auxiliaram a tornar-se essa atleta. O Estado e seus elementos podem ser glorificados, claro. Me parece apropriado? Não.
No momento 'ele' merece no máximo um tapinha nas costas, um "Mandou bem", seguido de "Agora vai lá, faça isso mais vezes, melhor, com mais pessoas.". "Vá. E acabe de uma vez por todos os preconceitos com negros. Acabe com os preconceitos contra gays e bissexuais, lésbicas e trans."."Insira eles em você. Ensine que não tem problema. Jogue bola. Pratique judô. Seja mais eficiente. Muita gente conta com você. E pelo amor de Deus, podemos começar isso por tirar de suas entranhas os curruptos?".

Antonio Siqueira disse...

Paulo, obrigado pela excelência do comentário perfeito.

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