quinta-feira, 17 de março de 2011

Texto publicado originalmente em Março de 2005, no Diário Via Fanzine e no Jornal Visual quando Elis completava 60 anos póstumos.




Música para mais sessenta séculos
Os 60 anos de Elis Regina faz lembrar que o Brasil 
ainda é órfão de uma música popular de qualidade.
Por Antonio Siqueira 




















Por inúmeras vezes foi difícil acreditar que naquela manhã de janeiro de 1982 o Brasil tenha amanhecido sem a sua maior interprete, estrela de uma luz incessante e de uma quase unanimidade, no auge de uma carreira batalhada com unhas e dentes; Elis Regina, além de ser a maior cantora que o Brasil já havia produzido, era também uma “guerrilheira” de si mesma. Uma doce “guerrilheira”.

No princípio foi complicadíssimo dado ao fato de que o pai, um militar conservador e reacionário; tentava de todas as formas impedir o brilho da “estrela” que desde a infância mostrava, sem a mínima intimidação, que havia nascido para cantar, brilhar, encantar e conquistar o mundo da forma mais pacífica e honesta que se tem conhecimento; com a força e beleza de sua voz e de sua canção.

A pequena guerreira saiu de casa aos 14 anos de idade, assinou um contrato numa emissora de rádio, dando início à carreira profissional. Com um sucesso imediato e o reconhecimento de que era um grande prodígio, a pequena notável cuidava da carreira como gente grande, enfrentando obstáculos (bem menores do que os de hoje, mesmo assim), conquistando um espaço precioso, num Brasil que respirava a brisa da Bossa Nova carioca. Era uma brisa que soprava, intermitentemente, das praias de Ipanema para todas as outras do mundo. Nascia aí o "pianizado" brazilian's beach song.

Alguns anos mais tarde, lá pelos seus 19 anos, e no início de um 1964 fatídico politicamente (Golpe Militar), Elis gravou dois LPs e um compacto que passaram desapercebidos pelo grande público. Passou a residir no Rio de Janeiro, se apresentado de cara, na extinta TV Rio e no “lendário” Beco das Garrafas. No “Beco”, foi apresentada à nata da Bossa Nova; gente de peso como o Zimbo Trio, Luiz Carlos Miele, Ronaldo Boscoli, Wilson Simonal. Um tesouro de 1,50 cm de estatura, mas de primeira grandeza e valor inestimável. Contudo, portava-se quietinha e tímida, ao lado de gente da pesada.

Em março do fatídico 64, ela vence o primeiro Festival da Música Popular Brasileira, interpretando “Arrastão” que, na minha opinião é a canção mais “brasileira” já criada pelo cancioneiro popular. Obra prima assinada pelo Mestre Edu Lobo e pelo poetinha Vinícius de Moraes. Segundo pesquisadores de peso das minhas relações, dois dias depois, com produção de Walter Silva, estrearia o show Dois na Bossa, ao lado de um garoto que cantava alto e afinadinho chamado Jair Rodrigues, e do Jongo Trio. Transformado em LP, esse show deu origem imediata ao programa O Fino da Bossa, fazendo o Brasil voltar seus olhos para a dupla, até então mais famosa do cenário musical brasileiro.

Todos os compositores de expressão desse cenário maravilhoso passaram pelo programa: Gilberto Gil, Edu Lobo, Marcos Vale, Dorival Caymmi, Adoniran Barbosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Cyro Monteiro, Sérgio Ricardo (o homem que quebrou o violão e atirou na platéia), Baden Powel, entre outras feras. Elis buscava a música em sua forma única e universal, bebendo de fontes e estilos inesgotáveis, dada a grande diversidade e do grande patrimônio cultural (o de quem fazia a cultura florescer) que, já formava seus pilares à época, para ganhar o status de Música Popular Brasileira de Qualidade.

Com a extinção do programa em 1967, Elis deu asas à sua carreira. Apresentou-se na América Latina e na Europa, lapidou ainda mais (se é que isso era possível) a sua forma de cantar e interpretar. Ganhou em suavidade, não perdeu a força e ainda presenteou gente como Chico Buarque de Holanda, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Ivan Lins (que sonhava com algumas de suas criações já com a voz da Estrela), Belchior, João Bosco, entre outros. Através de suas interpretações que eternizou cada obra e alçou e vez no cenário nacional, cada um dos citados compositores – por sua vez, todos, se encontravam no auge da criatividade. Mais madura Elis viajou o Brasil e o mundo cantando e encantando. Da imponência à simplicidade, traçava-se um só caminho, uma linha uníssona entre a genialidade e a mulher forte, apelidada pela imprensa e amigos de Furacão e Pimentinha, Elis Regina começava a escrever perpetuamente, seu nome na história da música mundial.

A grande voz do Brasil trazia uma bagagem de influências de outras grandes cantoras, também brasileiras, mas construiu um legado único e incomparável; sagrado e intransponível. Espetáculos fantásticos como “Falso Brilhante” e “O Trem Azul”, ficaram gravados na memória de quem os viveu e os assistiu.

Seu “namoro” e quase “casamento” com o Clube da Esquina foi um marco histórico na música brasileira. Milton Nascimento, que foi um dos maiores amigos e admiradores da “Pimentinha” a conheceu no Rio, no mesmo Beco das Garrafas, onde meu pai, jovem contestador à época, os viu juntos, várias vezes, antes do Festival da Canção de 67. Neste festival, Milton eternizaria os seus primeiros passos da sua Travessia pelo universo da “Mãe Música” até se transformar no word music man da atualidade. Elis, ao gravar a “Canção do Sal” de Milton e Ronaldo Bastos com sucesso incontestável, abriu espaço para uma parceria que durou uma década esplendida, num grande ápice de uma explosão criativa jamais visto na MPB.

Conviveu com as gravações do “Clube da Esquina “ de Milton e Lô Borges (guri prodigioso de 18 anos, na época). Elis dividiu o palco com Milton em várias capitais e em várias oportunidades, deixou-nos de presente a sua voz, numa de suas maiores interpretações, ao lado do próprio Bituca.

Cantou como se fosse pela última última vez “O que foi feito de Vera” do álbum “Clube da Esquina n°2”, fazendo “tremer” as estruturas dos estúdios da EMI. Na primeira apresentação no festival de Montreux na Suíça, onde há até hoje uma noite só para artistas brasileiros (atualmente, com o pior que se produz aqui), fez da introdução de seu show uma seqüência maravilhosa com Ponta de Areia, Fé cega, faca amolada e Maria Maria, que na voz da “baixinha”, deslumbrou o Brasil.


Gravou Beto Guedes, Lô Borges, Nelson Ângelo, Luiz Guedes e Thomas Roth e lançou para o Brasil a célebre frase:_“Se Deus quisesse nos falar, nos falaria pela voz de Milton Nascimento.” Elis gravou o “Clube” com carinho, amizade e admiração, marcando para sempre a vida daqueles jovens mineiros de talento e criatividade fenomenais.

Em 1977, o show “Falso Brilhante” estava em cartaz a todo vapor, e veio parar aqui no Teatro Arthur Azevedo, em Campo Grande, antiga zona rural da cidade do Rio de Janeiro. A região é famosa por fecundar grandes artistas como o falecido Robson Jorge, o “Paralama” João Fera, Marcos Damasceno, Adelino Moreira, Jackson do Pandeiro entre outros. Meus pais foram a este show e por não terem com quem me deixar, aos nove anos, me levaram e o grande medo deles era a minha inquietude. Era a primeira vez que eu assistia, ao vivo, um show musical e, podem estar certos, fiquei quietinho e bestificado. Elis era tão grande, tão brilhante e onipotente no palco, que fez um moleque doido como eu ficar sentadinho assistindo àquela que foi a maior cantora do planeta música.

Elis fez o Brasil cantar por quase vinte anos. Sua carreira esbarrou algumas vezes com o triste desfecho político do país. Foi vigiada de perto pela Ditadura Militar sempre e não raro, eram vistos carros estranhos rondando as imediações de sua residência na Estrada das Canoas, na zona sul do Rio. Em entrevistas, as quais ainda tenho reproduções de muitas bem guardadas, declarava sua insatisfação com o sistema e dizia-se sem muita esperança no futuro, tanto político, quanto cultural de nossa gente.

Elis Regina de Carvalho Costa, nascida em 17 de março de 1945, há exatos 60 anos, reescreveu a história da música brasileira e enalteceu a nossa cultura pelo planeta afora. Naquela triste manhã chuvosa de 19 de janeiro de 1982, fui para a escola com um sentimento de perda ao ver minha mãe chorar a morte de um ídolo. Elis morreu no seu apartamento em São Paulo, por intoxicação.

Antes que os mais conservadores venham gritar pelos motivos da morte de Elis, me ponho à frente, alegando que o sistema sempre destruiu os seus ídolos prematuramente, talvez sem esperar que ídolos mortos prematuramente, costumam ser elevados ao máximo de seu status e cultivados com devoção. Janis, Hendrix, Morrinson, todos destruídos pela Máquina do Estado, mas todos estão eternizados.

Como dizia, o Brasil continua órfão de uma cultura popular mais sólida, mais abrangente e mais BRASILEIRA por excelência, deixando o biscoito fino para grupos alternativos e, às vezes, nem isso. Elis Regina é exemplo de que, levar a cultura e a motivação para viver a vários pólos de nossa sociedade, não é uma tarefa tão complicada e assim, como ela mesma dizia: “Precisávamos aqui no Brasil de um pouco mais de boa vontade”. Ou como bem frisou, o meu dileto amigo e irmão da mais tenra infância; Fernando Toledo, em artigo recente, o qual me inspirou também a falar de Elis: “Elis era magistral. A grande cantora, a quem os fãs não se esquecem e carpem até hoje sua perda.”

Ao completar sessenta anos de seu nascimento, a “Pimentinha“ nos dá a certeza de que ainda há música viva em sua alma de estrela, para mais sessenta séculos. Assim como ela mesma suspirou certa vez: “AGORA EU SOU UMA ESTRELA!”.

Publicado originalmente em março de 2005 no Diário Via Fanzine e no Jornal Visual Arte






Elis Regina - Medley Milton Nascimento (Montreux Festival)





3 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente maravilhoso. E deixou uma saudade profunda dessa artista maravilhosa.

Martha Sandroni

Dayana disse...

PERFEIÇÃO: Era o verdadeiro nome de Elis Regina. Saudades.

Anônimo disse...

A INCOMPARÁVEL "Pimentinha" Elis...



Bela homenagem...Toninho!!


Márcia Cristina

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