quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Maravilhas da literatura

CONVERSA DE MENINO
Um conto de Mariza Lourenço























O menino era tão bonito que dava pena ralhar por qualquer coisa.



Que fosse livre então!



E era! Passava os dias empinando pipa, subindo em árvores e atentando os cachorros da vizinhança.



Tinha uma saúde de ferro, nunca precisara tomar remédio para baixar febre ou cortar infecção. Comia de tudo e não tinha desses enjoamentos de recusar brócolis e bife de fígado.



Um encanto de criança e, no entanto, em toda a sua pequena existência, jamais pronunciara uma única palavra. E não era doença, não. Reviraram o pobre menino de ponta-cabeça e nada de anormal foi constatado que justificasse a mudez.



Diziam que ele falava com os olhos, com as mãos, com o corpo inteiro. Quando sentia dor, fazia careta. Se a fome lhe vinha, apontava a barriga. Chorar não chorava, só quando pisava em caco de vidro ou prego enferrujado.



Os amiguinhos, com o tempo, aprenderam a identificar os gestos do companheiro e comunicavam-se com ele de um jeito muito particular, que só criança entende. Os adultos, ao contrário, irritavam-se com a teimosia e lhe davam uns petelecos.



Ele não ligava e continuava mudinho da silva.



As crianças das redondezas juravam de pés juntos que ele falava com os bichos lá na linguagem deles e que os animaizinhos o entendiam. Mas menino mente tanto que os adultos não se preocupavam com isso, mesmo que aos olhos de toda a Cidade, fosse visível a adoração dos animais por aquele menino bonito.



Na casa do garoto, a situação não era lá muito boa. Os pais brigavam demais e diziam “coisas” que ele não compreendia. Só sabia que dentro de casa tudo era sempre muito escuro e triste. A mãe era triste, o pai era triste, a irmã era triste. Até o cachorro era triste. E ele... Ele era mudo.



Certo dia foi embora de casa sem se despedir de ninguém. Nem do cachorro. Foi pra bem longe e nunca mais voltou.



O tempo passou, as crianças cresceram e deixaram de compreender a linguagem de criança e muitos casos foram inventados a respeito do sumiço do menino que não falava: Uns diziam que ele havia ido embora de carona com um anjo, outros, que tinha sido levado pelos ciganos.



O menino virou história bonita de se contar. Bonita e misteriosa. E ficou famoso, sim, senhor! Na pracinha onde brincava com os bichos foi erguida uma estátua em sua homenagem. E mais casos foram inventados. Agora já corre boato de que ele anda fazendo milagres.



Quem ri disso tudo é Filó, a andorinha que todos os anos costuma passar o verão na cidadezinha. Sempre chega com notícias fresquinhas do menino:



— Ele virou doutor de bicho, como não?



— Doutor de bicho?



— É, inclusive deu um jeito naquela ferida que eu tinha no cocuruto.



— Ele volta?



— Diz ele que não.



— Ele agora fala? Deixou de ser mudo?



— Nunca foi, ora! É que ele só falava da boca pra dentro. E continua assim.



— Mudo?



— Não! Continua falando da boca pra dentro. Mas a gente que é passarinho, entende.



— Ah...



— Vamos dar uma volta?



As duas andorinhas bateram asas e foram passear pela Cidade. Ela havia crescido, mas as histórias, as invencionices, as maldades, a falação e as brigas, como em todo canto, eram as mesmas.



Filó sentiu-se cansada e com desejos de ir embora. Antes, porém, avistou dois garotos brincando aos pés da estátua do menino bonito. Nada diziam.



A andorinha, então, aproximou-se e entre os três iniciou-se animada conversa.



E falaram bastante e riram demais, mas daquele jeito que somente passarinho e criança entende: da boca pra dentro e com todos os corações refletidos nos olhos.


Ilustração: Cândido Portinari

Musica: The Meeting - Rick Wakeman

6 comentários:

Julio disse...

Calei.

mariza lourenço disse...

só vi agora, Antonioni!!!!!
obrigada pela re-publicação desse conto. tão antigo ele. eu era mais 'crente' na época em que o escrevi. agora, nem sei mais...
você é um anjão!
beijo, beijo, beijo.

Celso Lins disse...

Já tinha lido essa beleza de conto. Seu talento é grande, Mariza.
Antonioni ainda deu o seu toque músical.
beijo

Antonio Siqueira disse...

Arte Vital disse...
Marizinha

Eu tenho alguns trabalhos seus impressos na minha pasta. Mostro à pessoas que curtam literatura (literatura verdadeira!!!). Na segunda-feira, pela manhã, estava eu a ler essa obra-prima, quando no player, tocou essa belíssima peça do Wakeman, "The Meeting". Achei que tinha muito a ver com o que eu lia e resolvi te dedicar esse post. Uma obra-prima completando a outra; belíssimo.

Pois é, Celso, o talento da sua amiga é inquestionável.

Tenham todos uma boa leitura

Antonio

Antonio Siqueira disse...

Reinteirando: A Marizinha concedeu uma entrevista a uma radio mostrou um pouco do seu universo maravilhoso.

Anônimo disse...

sublime!

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