sexta-feira, 26 de março de 2010

A própria razão desconhece

De um pé de tamarindo

à mordidez de um Neruda às avessas

Augusto dos AnjosP.Neruda

Por Antonio Siqueira

Não. Não é exagero literário comparar a linha poética do paraibano de Pau'darco, Augusto dos Anjos a de Pablo Neftali Neruda. A intrínseca relação destas duas vertentes geniais advém de forma bastante prosaica no extremo de um e de outro. A visceralidade dos versos de ambos, não obstante à temática do amor abrasivo, a forma contundente da desilusão e do vinvenciamento de emoções semelhantes. Neruda prima, com versos de urgência magnânima e contumaz o encantamento existencial em todos os pilares da existência humana; do amor, do espírito revolucionário, do ser político. Augusto dos Anjos abala as estruturas do mórbido ao rufar dos corações e mentes traídas. Essa filosofia, fora do contexto europeu em que nascera para Augusto dos Anjos seria a demonstração da realidade que via ao seu redor, com a crise de um modo de produção pré-capitalista, proprietários falindo e ex-escravos na miséria. O mundo seria representado por ele, então, como repleto dessa tragédia, cada ser vivenciando-a no nascimento e na morte. Um personagem constante em seus poemas é um pé de tamarindo que ainda hoje existe no Engenho Pau d'Arco.


Neruda confessou-se em certa feita, amante do único livro de Augusto, EU E OUTRAS POESIAS, editado em 1910. É a reunião do livro "Eu" (publicado em vida) a outras poesias que foram acrescentadas postumamente à obra (seu amigo Órris Soares reescreveu o seu póstumo). Augusto dos Anjos não viveu para conhecer Neruda, pois morreu de pneumonia aos 30 anos em 1914. A antítese das temáticas se encontram, metafisicamente, na narrativa literária. Basta pôr em prática a "Mãe Sensibilidade". Reparem bem nestes versos:

Psicologia de um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

A DANÇA

Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.
.
Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.
.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
.
Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Pablo Neruda


Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.


Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Ausgusto dos Anjos

O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera , amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Conclúo sem medo de ser contestado que, apesar da cronologia não tão distante, Augusto dos Anjos é, indubitávelmente, um Neruda às avessas.

1 comentários:

ediney disse...

Gostei do texto, das comparações e diferenças

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