domingo, 17 de janeiro de 2010

Quando as guerras se calam

por Antonio Siqueira

Ainda não sabemos quantos brasileiros morreram no Haiti. Há milhares de pessoas desaparecidas, e é difícil saber exatamente quantos de nossos compatriotas – aí incluídos turistas e voluntários das organizações humanitárias – se encontravam em Porto Príncipe ao entardecer de terça-feira, dia 12 de janeiro. A crônica de desastres semelhantes é tenebrosa: o número de vítimas cresce ao serem removidos os escombros.

À maioria deles – os soldados e os voluntários sociais – não devemos somente as lágrimas do luto, mas a homenagem que se destina aos heróis. Eles não pereceram em guerra de conquista, nem em expedição punitiva. Estavam ali em nome da paz. Procuravam minorar a situação de crueldade que se iniciou há 500 anos, quando, depois da viagem de Colombo, que mudou a História, os espanhóis começaram a colonizar a ilha na qual aportara o navegador. Foi a Santo Domingo que chegaram os primeiros negros no hemisfério ocidental. Eles vieram para substituir os índios que o governador espanhol, Nicolas de Ovando, tentara, sem êxito, escravizar: os nativos, acostumados à liberdade, não aceitaram o jugo, e foram praticamente extintos em todas as ilhas do Caribe. Como costuma ocorrer, as boas intenções levam ao inferno: o padre Bartolomeo de Las Casas, que assessorava o governador, foi quem lhe sugeriu importar negros da África a fim de substituir os índios.

Como todas as forças armadas do mundo, as nossas atuam de acordo com seu tempo e a natureza do Estado a que servem. Poucas foram as expedições externas dos soldados brasileiros. Da Guerra do Paraguai – não obstante as nossas razões legítimas, a de defesa do território nacional que havia sido violado – não temos só a notícia do heroísmo, mas também a do excesso nos combates e na repressão. Ressalve-se que os comandantes militares de ofício – Osório e Caxias – agiram dentro das regras militares. Caxias, depois da vitória de Humaitá, e da entrada vitoriosa em Assunção, considerou a guerra terminada, mas o Imperador decidiu enviar para o Paraguai seu genro, o francês Gastão de Orleães, Conde d’Eu, a fim de perseguir o fugitivo Lopez. Ele, de espada virgem, quis se fazer herói sobre um povo já vencido e destruído e, de acordo com historiadores paraguaios, chegou a incendiar um hospital onde se encontravam feridos. Sua atuação inadequada contribuiu para que muitos militares aderissem à ideia republicana, logo depois do retorno à pátria.

A nossa presença na Itália, apesar das dificuldades, foi gloriosa. Com a força expedicionária, preparada rapidamente, e corpo de aviadores recrutado entre jovens sem nenhuma experiência, marcamos os anais da guerra com atos de extraordinária bravura, ainda que a grandeza dos combatentes sempre se deva mais à causa pela qual lutam do que a seu resultado. E nunca é demais relembrar que os exércitos existem para defender a nação como um todo, não para servir a uma ou outra facção política interna, a uma ou a outra classe social.

Os soldados que morreram no terremoto do Haiti são tão heróis quanto os que tombaram em Monte Castelo e em Lomas Valentinas. Eles deixaram suas famílias, seus amigos, suas noivas e partiram para uma guerra pela paz, contra a miséria e todas as suas consequências. De repente, as imprevistas forças da natureza irromperam, como em uma emboscada. Contra elas de nada poderia a sua coragem. Assim, caíram indefesos, os fuzis mudos, os sabres inúteis.

Os outros mortos foram, também, soldados da mesma causa, como é o caso da doutora Arns. A médica, que salvou milhares e milhares de crianças brasileiras da morte prematura, sentira a necessidade de se desdobrar, de salvar também as crianças haitianas. São momentos assim que nos mostram a possibilidade de um mundo único e novo, no qual as fronteiras políticas não signifiquem trincheiras, mas apenas marcos de jurisdição política.

Sarkozy (a França deve ter
mauvaise conscience com relação ao Haiti) está propondo esforço internacional para a reconstrução do país. Espera-se que não se trate apenas de reconstrução física dos edifícios, mas de verdadeira construção humana, com escolas, hospitais, moradias, trabalho, justiça e esperança.



artigo publicado originalmente no Jornal Atual em 15/01/10

ilustração: "Armas Caladas" - Pablo Picasso





1 comentários:

Celso disse...

Essa tragédia não tem precedentes na história moderna. O que aconteceu no Haiti será sempre uma chaga aberta na humanidade. muito bom o novo ARTE VITAL. abraços

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